Não pelo bando

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Uma garoa tímida caía sobre a cidade. A fria madrugada parecia não ter fim, como se o Sol tivesse fugido, desistindo de iluminar aquele lugar de horrores e decepções. Havia muita crueldade nos corações das feras que cruzaram o caminho de Abbo, e ela própria se sentia diferente de quando atravessara o cartaz, na estação de trem. Estirada no chão, olhos secos e enrugados, sentia-se vazia de vontade ou sentido.

– Por favor, senhorita... Eu insisto.

O ratinho cinza abraçava o focinho da corça, como de costume. A pequena bola de pelos tremelicava, desejosa por se enrolar nos lençóis e colchas sobre a cama, mas incapaz de abandonar sua amiga no piso congelante.

– Não posso imaginar como está se sentindo agora, Abbo. Eu sempre soube que morava em uma máquina de comida gigante, mas... no seu caso...

– O Sol chora, Ruffles. Sabia?

De repente Abbo voltou a falar. Sua voz fraca era quase um sussurro, como as últimas palavras de um convalescente.

– Não, eu não... A-a senhorita precisa se aquecer...

– Em noites frias como esta, na Cidade dos Cervos – ela continuou, falando tão baixinho que mal movia os lábios –, o Sol fica mais escuro que o normal. Dizemos que o Sol está chorando, porque o clima sombrio é acompanhado de uma pancada de água que nosso astro derrama sobre a cidade. Meu irmão adorava brincar sob as lágrimas do Sol. Nosso pai brigava com ele, dizia que é desrespeitoso comemorar a tristeza dos outros, e depois dava uma surra de cinta no Abuu.

– Seu pai parece ser um cervo rigoroso – Ruffles comentou, esfregando suas patinhas para se aquecer. – Deve ser duro lidar com ele.

– Ele morreu quando eu ainda era criança, não me lembro bem de como foi. O Prefeito Tan era amigo da família e me deu o cargo de papai, quando eu fiquei mais velha. Desde então Abuu e eu levamos vidas separadas. Nós mantemos contato, e ele me visita sempre que pode... mas sinto muita falta de quando morávamos, comíamos e dormíamos juntos.

Abbo sentia sua cabeça cada vez mais leve, quase desmaiando de frio e fome. Ainda sobravam algumas folhas de jornal, ao lado da cama, mas a jovem corça não tinha motivos para adiar a morte. A garoa persistia lá fora, enquanto o passado a atormentava com lembranças, do lado de dentro: o céu sempre pálido e uniforme, como um grande domo metálico; as fronteiras da cidade, onde ninguém morava e para onde ninguém jamais ia; o Banco dos Cervos, tão grande que parecia sumir no horizonte e englobar toda a cidade... e além disso...

– O Sol chora, Ruffles... – ela apertou seus olhos, enraivecida por ter um fardo tão grande e ser tão estúpida, ao mesmo tempo. – Não importa o quanto eu lute, ou quantas chaves eu roube... Não posso salvar nem Abuu nem Tan, pois eu nem percebi que o Sol sobre nossas cabeças era apenas um buraco no topo do Banco dos Leões.

Depois de algumas horas a chuva cessou, mas a escuridão da madrugada ainda persistia. Rato e corça não sentiam mais frio, entumecidos pelo esgotamento sem sono. Será que Tan sabe disso? Ele sempre se ausenta, dizendo ir a reuniões em outras cidades... Sim, ele sabe. Mas por que não me contou? Por que escondeu isso de mim, mandando-me para cá em busca da chave que abre a única porta que separa os cervos dos leões? Será que Tan quer isso: o fim de nosso bando?

– Eu vou me entregar, Ruffles – a jovem decidiu. – Assim que o Sol nascer, falarei com Tukufu... sem a juba.

– É isso o que deseja, senhorita? – o ratinho ergueu seu focinho, cansado demais para contrariar a corça.

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