O cervo irmão

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Três pancadas cortaram o silêncio da casa de Abbo, despertando a jovem corça de seus pensamentos. Ela se levantou do sofá da sala, pegou o pequeno castiçal e foi ver quem batia em sua porta tão tarde da noite. Ela quase não reconheceu a estranha figura que aguardava, do outro lado:

– Há quanto tempo, maninha.

– Abuu? É você mesmo? – ela abraçou com força o cervo nas sombras, puxando-o para dentro de casa. Sob a luz da vela do castiçal, os contornos de Abuu eram mais nítidos, refrescando as memórias de uma infância curta, mas feliz, que os dois irmãos compartilharam

– Me desculpe por não vir mais vezes. Ando tão ocupado na Fábrica de Jornal que quase não durmo mais – o cervo disse, largando sua pesada mochila no chão. – Olhe só o tamanho das minhas olheiras!

Abbo já tinha reparado na aparência desgastada do irmão, mas outra coisa chamara mais sua atenção: a cabeça de Abuu estava torta, pensa para o lado direito, e seu chifre esquerdo havia sido decepado. A corça tentou esconder sua surpresa, mas não conteve uma reação de espanto.

– O quê? Isso? – Abuu apontou para o toco de chifre em sua cabeça. – Não precisa fazer essa cara. Não foi nada demais, é sério.

Onde fica o chuveiro, mesmo? Eu queria tomar uma ducha antes de pormos o papo em dia. Não vejo água corrente desde que andei embaixo do Sol, naquele dia escuro.

– Fica lá em cima – ela apontou.

O cervo seguiu o caminho indicado. Seus passos tortos davam a impressão de que estava bêbado, mas sua irmã sabia que o desequilíbrio era causado pela ausência de um chifre. As galhadas dele sempre cresceram longas e pesadas tal qual ramos de árvores, e ele se orgulhava disso. Abbo jamais teria sonhado que seu irmão se mutilaria assim.

Depois de alguns minutos, Abuu saiu do banho e foi encontrar sua irmã na cozinha. Ela estava fazendo chá de capim-santo, e o aroma encheu suas narinas:

– Não sinto um cheiro tão bom desde que te visitei, há seis meses.

– Não tem chás onde você mora?

– Estou morando dentro da Fábrica, assim como a maioria dos funcionários. Tudo lá cheira a tinta, inclusive a comida. Se bem que vai jornal na comida, então é de se esperar.

Ele se sentou à mesa e apanhou um dos gravetos de pinheiro da tigela, para mascar enquanto conversavam.

– Não entendo o porquê de imprimirem notícias nos jornais, se vamos comê-los depois – Abbo serviu uma xícara fumegante de chá para seu irmão, tentando tirar os olhos de sua cabeça pensa.

– Sempre foi assim... Ah! – ele se virou para cuspir o galho de pinheiro mascado, mas seu chifre bateu na xícara à sua frente, espalhando líquido quente por toda a mesa. – Me desculpe, foi sem querer... Ainda estou me acostumando com ele... – o cervo se levantou para limpar a bagunça, porém sua galhada içou a chaleira e a soltou no chão, quebrando-a em dezenas de caquinhos. – Droga! Ponta que partiu! M-me desculpe... pela chaleira e pelo palavrão...

– Calma, Abuu. Está tudo bem, eu... eu entendo.

– Eu sinto muito – ele continuou a se desculpar. – Nós...

Nós imprimimos notícias nos jornais porque é para isso que eles servem, sabe. Eles são comida com letrinhas. Essa é a função deles.

– Mas não vejo tantas novidades na nossa cidade, ultimamente – Abbo apanhou um guardanapo e ambos se abaixaram para recolher os cacos. – Sobre o que vocês escrevem?

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