Viver sem orgulho

31 3 0
                                    

O filhote de leão olhava para ela, desconfiado.

– Você entendeu tudo, Ghofiri?

– Sim, tio Abbo...

– Vamos recapitular, por via das dúvidas – o ratinho cinza estava na soleira da janela, de costas para a chuva torrencial que caía lá fora. – O leão Imara dormirá neste quarto novamente, e amanhã bem cedo ele o levará para o Quartel do exército leonino.

– Você virá comigo, certo, tio Ruffles?

– Ele não pode, querido – Abbo respondeu pelo rato.

– M-mas... vocês vão me deixar sozinho?

A corça e o rato trocaram olhares de piedade, mas aquilo era preciso. Todo o decorrer do plano dependia do sucesso do dia seguinte, e se Ghofiri levasse Ruffles consigo, mesmo que escondido, algum militar de olfato apurado poderia farejá-lo.

– Vai dar tudo certo, eu prometo – a jovem disse, torcendo para que fosse verdade. – E você não estará sozinho: Imara é muito forte e confiável, vai protegê-lo se algo der errado.

Ghofiri era muito esperto. Ele sabia que, se Abbo estava mandando um leão assustador assim junto dele, era porque havia perigos à espreita. Naquela tarde, quando a corça-leão revelou a tarefa dele, o filhote não entendeu nada a princípio, mas aos poucos foi ligando os fatos: Abbo ficou admirada com a capacidade artística dele, então pediu que fizesse um trabalho especial, algo tão desafiador que nem o próprio leãozinho sabia se era possível.

Abbo queria uma chave.

A primeira coisa que a jovem lhe perguntara, depois de o resgatar da cova do leão-mor, foi se ele já vira uma chave prateada, com pontas na base, pequena e maciça como um osso metálico. "Sim, o leão barrigudo me deu ela algumas vezes", Ghofiri havia respondido. "Ele vivia pedindo desenhos daquela chave, e cópias em argila, uma atrás da outra, e de todos os ângulos possíveis. Eu os fazia, ele me dava um biscoito de fígado por cada desenho bom... e puxava meu rabo a cada desenho ruim. Depois de um tempo ele parou de puxar meu rabinho".

Assim a corça soube que encontrara o único na Cidade dos Leões que seria capaz de reproduzir a chave do banco. Não por sua experiência em metalurgia, mas por sua memória impecável.

– E-eu não quero fazer isso, tio Abbo... Eu quero... quero...

O filhote fez beicinho, virando-se para a direita e fechando seus olhos redondos e brilhantes.

– Pode pedir – a corça disse, com sinceridade. – Eu lhe darei qualquer coisa. O que você quer? Heim?

Ghofiri tentava conter o choro, mas a tristeza saltava em sua garganta como um peixe vivo.

– Tio Tukufu disse que... Ele disse que... que minha mãe...

Ruffles compreendeu perfeitamente a situação. Aquele leãozinho não apenas perdera seus pais: ele foi arrancado de sua família. O ratinho cinza saltou para o chão, indo até as patinhas do leão de cabeça e olhos vermelhos:

– Sabe de uma coisa? – Ruffles sacudiu seus bigodes, fazendo a carinha mais animadora e amigável que um ratinho poderia ter. – Seu tio Abbo é o leão mais legal deste mundo. Ele prometeu que não deixaria nenhum mal acontecer comigo, e olha como estou! – Ruffles deu uma volta, sapateando no chão frio e arrancando um sorrisinho do filhote de leão. – Estou intacto! Nenhum pelinho faltando!

O Banco dos LeõesOnde histórias criam vida. Descubra agora