Cansado de cervos

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Ninguém ia para as fronteiras da Cidade dos Cervos. Não havia nada lá. As estradas descuidadas sempre acabavam em uma vegetação densa e impenetrável. Apenas uma das estradas fronteiriças não fora coberta por espinheiros pontiagudos: a estrada pavimentada que levava ao Banco dos Cervos.

Tan mancava bastante. Sentia seu velho corpo reclamar do esforço, embora não tivesse caminhado tanto. Em um de seus cascos trazia a chave prateada, no outro, a bolsa a tiracolo da corça. Ele ergueu seus olhinhos enrugados, os quais refletiam o Sol pobre dos cervos, tão falso quanto o sorriso no rosto do velhote. Sua pata tremia de emoção, e sua testa suava com o nervosismo.

– Ela conseguiu... A corça conseguiu... – Tan repetia para si, quase chorando. – Eu sabia que fiz bem em poupá-la... Ela realmente trouxe minha chave de volta! Está na minha pata! Tudo que me separa do mundo exterior é uma simples volta na fechadura!

Ele enfiou a chave no buraquinho empoeirado à sua frente, mas, antes que a girasse, Abbo gritou ao longe:

– Não faça isso, Tan! Não faça isso!

– O-o quê? – o velho cervo se virou, sobressaltado. – Você... Você não disse que iria...?

– Por favor, pelo amor que você tem por mim, não abra o Banco dos Leões!

A corça galopava o mais rápido que podia, ofegando e levantando poeira rua afora.

– Você já fez sua parte, Abbo. Deixe o resto comigo!

– Mas se o senhor abrir essa porta...

– Os leões vão entrar – o Prefeito completou a frase da jovem. Abbo freou sua corrida, surpreendida pelo que seu chefe dissera.

– Você me mandou buscar a chave com o pretexto de salvar nosso bando. Mas não é isso o que você quer. Você... Você quer o fim do bando dos cervos!

– Não, docinho... pelo contrário – ele largou a bolsa a tiracolo vazia no chão.

– Minha bolsa! Ruffles! Onde ele está? O que fez com meu amigo?

– ...

Responda, Prefeito!

Os chifres de Tan começaram a deslizar em sua cabeça, como sempre. Porém dessa vez o velho corcunda não se deu ao trabalho de ajeitá-los. Simplesmente abriu um largo sorriso para sua Secretária, com dentes amarelos e esquisitos.

– Estou cansado de cervos – ele disse. – Eu não planejei a falência deste lugar, mas sabia que ela aconteceria. O Banco dos Leões é grande, mas não foi feito para durar eternamente – seus chifres escorregaram mais um pouquinho, ficando tortos como nunca. – Pretendia reabastecer o banco de tempos em tempos, assim como fazem com as máquinas de Ruffles, só não contava com a traição de meu General. Ele sempre mostrou interesse em liderar os leões, mas seu temperamento era de guerreiro, não de governante – sua galhada escorreu ainda mais, parando quase que na altura da bochecha. – Depois que os cervos foram alocados em suas casas, ele roubou minha chave, trancando-me aqui. Até agora.

– Então é verdade? – Os pelos da corça se arrepiaram com aquela história. – C-como não percebi isso antes? Depois de todos esses anos trabalhando ao seu lado... como não percebi que você...

A galhada do ex-Prefeito soltou de sua cabeça, crepitando pelo chão. De repente o velho corcunda esticou suas costas e estalou os ossos de sua coluna, erguendo-se como uma montanha de rugas.

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