Engolida pela escuridão

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Tan amparou a corça apavorada, erguendo o lampião que acabara de acender. Sua luz, mais intensa que a da vela, revelou detalhes da coisa que obstruía o caminho, e Abbo percebeu que se tratava de um armário de pinheiro velho e empoeirado. Não havia presas ou garras, tampouco os olhos vermelhos e vorazes que a imaginação dela moldou nas sombras. Porém nem a luz do lampião dispersou a grande juba dourada, que repousava sobre o armário deteriorado.

– Isso... Isso é de verdade? – Abbo tremia da cabeça aos cascos, encolhendo-se nos braços do velho que insistia para prosseguirem, empurrando levemente a corça.

– Lembra que falei do meu encontro com os leões?

– L-lembro, lembro s-sim...

– Pois bem – ele soltou os ombros de sua Secretária e esticou os braços, estalando os ossos da coluna desgastada, para apanhar a cabeleira de cima do armário. – Este é o meu troféu. Quando eu ataquei a fera sedenta por sangue com minha faca de rocambole, arranquei do leão seu maior símbolo de orgulho. Esta, docinho – Tan sacudiu a pelugem, espalhando poeira por toda parte –, é a juba do Prefeito dos leões.

Abbo não tinha palavras para descrever a admiração que sentia por seu chefe. Aos seus olhos ele sempre foi um grande líder e um amigo maior ainda, e desde criança o imaginava como sendo algo além de um simples cervo. Ao saber da grande façanha que Tan efetuou em nome do bando essa admiração cresceu ainda mais. Mas ver o velhinho balançar a enorme juba de um lado para o outro, como uma flâmula dourada de vitória, fazia dele o cervo mais admirável que a corça conhecia.

– Todos os leões são grandes assim? – ela perguntou, recobrando o controle de sua voz.

– Se não forem maiores. Assim como existem cervos fortes o suficiente para puxar carroças de batatas, alguns leões são capazes de puxar uma carroça de cervos puxadores de carroças de batatas.

– Eu... eu estou tentando compreender o seu plano, chefe, mas não vejo como poderíamos enfrentar algo assim.

Os olhinhos cerrados de Tan viram a desesperança que tomava conta do rosto de Abbo. Ela não parecia confiante o suficiente para o que estava por vir. O plano do Prefeito exigiria que a jovem desse tudo de si. Um passo em falso e todos estariam condenados.

– Talvez seja melhor irmos direto ao ponto – o velho corcunda disse, atraindo o olhar da corça com uma balançada de juba.

– Você não vai enfrentar leão algum, docinho. Você vai se infiltrar na Cidade dos Leões usando isto – Ele esticou a juba, levantando seus cabelos dourados como um lençol peludo.

– Eu... Me disfarçar de... – As orelhas de Abbo empinaram de espanto. – Então este era o seu plano?

– Uhum.

– Ir à Cidade dos Leões e tenta achar a chave do Banco dos Cervos?

– Uhum.

– E o senhor espera que um cervo passe despercebido, só porque está vestindo uma juba comida por traças?

– Uhum. Bom, um cervo não: uma corça – Tan sorriu para sua Secretária.

A jovem estava boquiaberta com a insensatez do plano de seu chefe. Esperava ouvir algo brilhante de seu mentor e melhor amigo, mas aparentemente os anos recaíram sobre sua sanidade.

– Não pode estar falando sério.

– Eu mesmo o faria, mas sou velho e frágil demais para conviver com os leões... e meu corpo é grande demais para passar.

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