Compreensão

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Os olhos da corça passeavam sobre o balcão da joalheria. No canto direito havia um cesto cheio de nozes e castanhas, provavelmente usados para fazer colares, e ao lado dele, uma caixa estava abarrotada de carambolas. Por toda parte havia frutos verdes e sementes, vegetais e ervas de cheiro, todos usados como adorno pelos leões. Abbo salivava, ansiando cravar os dentes em um par de brincos de morangos, quando o dono da loja notou sua presença:

– Bom dia, cavalheiro. Vejo que gostou dos meus brincos – era um leão velhinho, com juba branca e olhos cheios de rugas.

– Eles parecem... deliciosos – a corça deixou escapar.

– Fico muito feliz quando elogiam meu trabalho – o velhinho esticou a pelanca de suas bochechas, abrindo um sorriso que exibia dentes um tanto amarelados. – Nem todos compreendem a complexidade do trabalho artesanal em vegetais. Sou artesão desde a juventude, trabalho com todos os tipos de tubérculos, o que é raro por essas bandas... Inclusive acabei de lapidar uma gargantilha de inhame que...

Abbo mal prestava atenção no falatório daquele leão. Estava concentrada no ratinho cinza que discretamente saltou do bolso de seu paletó, escorregou por sua perna direita e saltitou até o engradado de maçãs vermelhas. Agarrou uma e voltou correndo para os cascos da jovem, escalando com esforço sua calça e se enfiando novamente no bolso, com maçã e tudo.

– ... do império da batata frita. Não concorda, cavalheiro?

– O quê? – a corça-leão se distraiu, perdendo o fio da conversa com o Joalheiro. – Ah, bom... Eu... só posso concordar que o senhor tem uns acessórios muito bonitos, aqui.

– Vê-se de longe seu bom gosto – o velhote engoliu o elogio frio, orgulhoso de seu trabalho. – Deixe-me mostrar algumas pulseiras de casca de laranja que farão qualquer leoa cair às suas patas. Onde foi que eu as guardei... Vamos ver...

O leão gemeu ao se abaixar por trás do balcão. Abbo cutucou Ruffles, sinalizando uma brecha para furtar mais comida. O ratinho saltou do paletó, olhando para os lados e decidindo por apanhar um cacho de uvas, verdes e graúdas. Antes que o leão de juba branca se levantasse, o pequenino já estava enfiando as uvas no bolso de sua amiga, agradecido pelos bolsos dos leões serem bem grandes.

– Argh... Minha coluna já não é mais a mesma – o artesão reclamou, depositando uma caixinha de madeira sobre o balcão. Realmente o trabalho dele era impressionante: as pulseiras de casca de laranja pareciam serpentinas de ouro, com desenhos e formas abstratas delicadamente entalhadas. – Não disse que eram lindas? É uma pena que não durem para sempre, mas essa é a beleza dessa arte!

– O senhor deve ser o leão mais talentoso da cidade – a corça lançou mais alguns elogios, esperando que o velho voltasse a tagarelar e se distraísse, assim Ruffles retornaria à pilhagem.

– Não sei, não sei. Ouvi falar de um filhote que o Prefeito sequestrou... digo, adotou – o velho olhou para os lados, com a pata na boca. – Dizem que, apesar da pouca idade, ele é capaz de desenhar qualquer coisa só de olhar. Não sei se é verdade, mas ainda assim o invejo: levei décadas de estudo e treino para fazer meus trabalhos, imagine a bênção que seria se, apenas olhando para uma paisagem, eu pudesse esculpi-la em uma abóbora!

Dessa vez o ratinho cinza enfiou duas bananas quase maduras no bolso de Abbo. A corça achou melhor pararem por ali, ou o artesão suspeitaria de seu paletó anormalmente inchado.

– Bom, eu preciso ir agora. Foi um prazer conhecê-lo.

– J-já vai? – o leão de cabelos brancos e olhos enrugados pareceu desapontado por não ter vendido nada. – Digo... Eu peço desculpas, meu jovem... Devo ter te aborrecido com meu falatório de velho caduco.

O Banco dos LeõesOnde histórias criam vida. Descubra agora