Família

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Ambos, corça e leão, estavam atarefados. Ruffles os observava de dentro do pallet, assustando-se toda vez que o grande felino se aproximava de seu esconderijo. Embora houvesse prometido para Abbo que não fugiria, o rato cinza de olhos pretos cogitava a possibilidade de sair correndo e se esconder em outro lugar, porém sabia que a jovem estava certa: não havia lugar seguro para um rato na Cidade dos Leões. Depois de horas em silêncio, tentando ignorar a fome e a sede, o ratinho foi surpreendido por um par de cascos que empurraram um pedacinho de pepino para dentro do pallet. A corça não se esqueceu de mim, ele pensou, mordiscando feliz as sementes e o miolo. Para quem se tornaria tira-gosto, até que estou me saindo bem. Mas qual será o desígnio dela entre os felinos?

O Sol já se recolhia no horizonte quando finalmente toda a decoração do Grande Comício foi concluída. Abbo e o leão suavam em bicas, mais pelo calor escaldante da barraca do que pela dificuldade do trabalho. Asani bebeu metade do balde de água, deixando-o quase vazio para a corça que se esqueceu de fazer cara de nojo por dividirem a bebida. Ao menos o pallet é fresquinho, até agora só tenho a agradecer à essa cervídea, Ruffles concluiu.

Os dois funcionários conversavam sobre como transportar os cartazes maiores - Asani queria dobrá-los para diminuir o tamanho, mas a corça insistiu para que os enrolassem, evitando amassar o trabalho de colagem - quando um leão estranho adentrou a barraca:

– Credo! Que calor infernal, e que cheiro de podre! – ele fez questão de enfatizar.

– O que você quer? – Asani se adiantou, incomodado com as ofensas daquele leão desconhecido.

– Oh, não ligue para mim – o outro fez um gesto largo com as patas, como se estivesse abanando asas imaginárias ou algo assim. Abbo notou que, pela expressão de seu companheiro, o leão encardido não gostava nem um pouco daquele visitante. – Só estou examinando as condições desta tenda.

– Condições? Tudo aqui vai ser desmontado ainda hoje, para que você precisa...

– Psiu-psiu-psiu – o leão silenciou Asani, afastando-o com um balançar de dedos. Depois caminhou por entre as caixas de fitas coloridas e os rolos de faixas e cartazes, vistoriando tudo, mas sem tocar. Aquele sujeito se encolheu de uma forma quase cômica ao passar por baixo de um cordão de fitas e desviou com repulsa do balde de água dos funcionários. Quando ele se abaixou para examinar as latas de tinta, ao lado do pallet de Ruffles, o ratinho pôde sentir o perfume de flores do campo que o leão passara no pelo. – Bom, está tudo sujo e bagunçado, mas eu não esperava menos.

– Isso aqui é uma oficina, precisa ser suja e bagunçada – O leão encardido retrucou.

– Não quando se está prestes a receber visitas – o outro disse, limpando as patas em seu terno azul-celeste.

– Visitas? – Abbo ergueu as orelhas cobertas pela juba falsa.

– Sim, rapazinho – ele deu um sorriso estranho para a corça, mostrando dentes mais brancos que o normal para um leão. – Uma visita importante, então se comporte e... dê o melhor de si. – Depois lançou um olhar ríspido para Asani, atravessou a tenda e tirou a cabeça para fora, dizendo qualquer coisa para alguém do outro lado.

Abbo e Asani trocaram olhares, avançando para ver o que estava acontecendo. Logo em seguida, outro leão atravessou o portal de lona, obscurecendo todo o interior da barraca com seu corpanzil. Era como se tivessem arrastado um armário peludo tenda afora, um armário barrigudo, de terno azul-marinho e com um pequeno par de óculos sobre o focinho largo:

– Há quanto tempo, pequeno Asani.

De dentro do pallet, Ruffles viu o queixo do leão encardido cair um palmo. O ratinho ficou impressionado com aquele velho, cuja barriga parecia uma melancia madura, mas nada se comparava expressão do leão das fitas.

O Banco dos LeõesOnde histórias criam vida. Descubra agora