O leão encardido

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As lâminas da caçamba se abriram, deixando uma lugada de ar fresco entrar. O leão de capacete branco e prancheta mandou que descessem um por vez, perguntando nomes e locais de origem. O chacoalhar constante do caminhão desorientou a corça, que passou a viagem toda espremida entre seus colegas de confinamento. O apertume era tanto que vez ou outra seus pés nem tocavam o chão, e Abbo nem sabia se ainda estava de juba.

– Você aí, esquisito – o leão da prancheta apontou para a jovem. – Desça ou dê espaço para os outros passarem. Se ficar vai para o norte cavar trincheiras, a escolha é sua.

Abbo achou melhor descer. Saltou com dificuldade da caçamba do caminhão, sentindo que o mundo tremia igual pudim. Uma forte luz no horizonte ofuscava seus olhos, forçando-a a cobrir o rosto com os cascos.

– Qual é o problema? O leãozinho do interior não gosta do Sol?

– Não é isso, senhor. Eu só... Espera, você disse Sol? – Abbo cerrou os olhos, tentando assimilar o que estava vendo: repousada sobre o horizonte, uma grande esfera de ouro banhava toda a Cidade dos Leões com sua luz quente e terna; casas, ruas e montanhas além, tudo estava imerso em sua celestial aura dourada, como se um fino lençol de seda amarela cobrisse os prédios e aquecesse o mundo ao seu redor. – Aquilo é o Sol? Tem certeza? Aquilo ali?

Alguns leões a encararam, desconfiados. Temendo causar estranheza, Abbo puxou sua juba para mais perto do rosto, adotando uma postura menos chamativa.

– Às vezes me pergunto se preciso mesmo desse emprego – o leão de capacete suspirou. – Nome?

– Abbo...

– Deixe-me ver... – ele folheou os documentos da prancheta várias vezes. Procurava o nome da corça-leão entre os outros, e a jovem sabia que não o encontraria. Ela já estava bolando uma desculpa quando o outro voltou a falar: – Ah, sim, aqui está. Abbo: vai auxiliar nas bandeirolas e enfeites.

– Você... achou meu nome aí? – ela se surpreendeu.

– Mas é claro! Eu, Rashad, o grande Organizador de Eventos, nunca cometo erros! – sua voz soou decisiva, embora suas ore-lhas movessem em demasia.

A jovem aguardou no local que lhe foi indicado, agradecendo aos céus por não ter sido questionada quanto ao seu local de origem. Vários outros leões se agrupavam pátio afora, esticando as pernas e estalando suas juntas enquanto aguardavam mais instruções.

O ar era fresco e fugidio, movendo-se como se a Cidade dos Leões estivesse viva e respirando. Abbo não conseguia desgrudar os olhos da bola em chamas que Rashad chamara de Sol. O verdadeiro Sol não passava de um ponto luminoso acima da terra... Ao menos era assim em sua cidade natal. Era alto e sutil como a galhada pra-teada de um cervo, e não dourado e rasteiro como a juba de um leão dorminhoco. Talvez o Sol queira agradar a todos, imitando cada bando conforme seus gostos... Talvez se eu entender mais sobre o Sol eu entenda mais sobre nossas diferenças...

No fim, cinco grupos foram formados com mais ou menos dez leões em cada... exceto por Abbo. A jovem corça peluda observava enquanto os outros se reuniam. Falavam sobre a viagem desconfortável, perguntando-se no que trabalhariam e quando iriam jantar. Quando o último grupo se formou, Rashad fez o último sinal de visto na prancheta e distribuiu suas tarefas, apontando com sua pata manchada de tinta:

– Vocês oito cuidarão do palanque. Sigam para o norte e procurem o Arquiteto Lyapo, ele dirá o que fazer.

"Vocês, ajudem a descarregar as lonas. Estão naqueles caminhões que acabaram de estacionar. Guardem-as no depósito ao lado."

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