Abandonado

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Um cervo caminhava pela noite escura. A cabeça torta e com apenas um chifre dava um ar de estranheza para aquela figura magra, distorcendo seus passos pelas ruas de terra batida. Abuu ia para casa, ou melhor, para o galpão que era seu lar agora. Depois do chá com sua irmã, começou a pensar como andavam distantes um do outro, não só fisicamente: Abbo era Secretária do Prefeito da Cidade dos Cervos, enquanto que Abuu não passava de um funcionário da Fábrica de Jornal. Nem cargo ele tinha... seu trabalho era fazer o que fosse ordenado, sempre foi assim. Contudo, o cervo estava feliz por sua irmã. Após a morte de seu pai, tornou-se responsável por garantir o melhor para sua família, e Abbo era toda a família que lhe restava.

Depois de muito caminhar, finalmente chegou ao galpão de madeira onde ficavam estocados os rolos de papel jornal. Abuu entrou pela porta da frente, fechando-a atrás de si com cuidado para não acordar o Vigia, um velho cervo que dormia na recepção iluminado pela luz de uma vela de cera. Caminhou na ponta dos cascos, fazendo o possível para não esbarrar o chifre em nada.

– Psiu! Hey, Abuu!

Alguém o chamou de dentro das sombras. O rapaz forçou a vista para ver quem era, acidentalmente içando o castiçal da vela com sua galhada desajeitada:

– Quieto – a voz o repreendeu. – Não acorde o Lugono. Fique parado, eu vou te ajudar.

Uma corça de pelos claros se adiantou, agarrou o chifre de Abuu, retirou a vela e a depositou sobre a recepção. Depois ela puxou o cervo para longe do Vigia adormecido, tentando evitar mais estragos.

– O que faz acordada até tão tarde?

– Estava te esperando, fiquei preocupada.

A porta ao fundo levava a um lugar cheio de prateleiras altas, onde rolos de papel aguardavam ser despachados para as prensas de jornal do outro lado da rua. Entre um rolo e outro, os funcionários sem teto acharam abrigo: era cada vez mais comum cervos venderem suas casas para pagar dívidas, ou até mesmo as comerem, caso feitas de palha. No caso de Abuu, seu cantinho na prateleira era um dos mais limpos que já ocupou.

– Você demorou tanto... Já pegaram sua cama...

– Não faz mal – Abuu respondeu, embora estivesse decepcionado: levou bastante tempo para deixar sua prateleira no mínimo confortável. – Eu arranjo outro lugar para dormir.

– Pode ficar comigo, se quiser – a corça sugeriu, com um sorriso amigável.

– Não, obrigado – ele respondeu automaticamente, e só depois percebeu o quão ríspido tinha sido. Vendo a decepção nos olhos da amiga, Abuu forçou um sorriso e cochichou no ouvido dela: – Eu trouxe gravetos de pinheiro.

– Jura? – ela ergueu as orelhas, lembrando que também tinha algo para o cervo. Enfiou o casco no bolso do agasalho e sacou uma carta selada com cera de abelha. – O chefe me pediu para te dar isso. Não sei o que é, mas pode ser o pagamento atrasado.

– Eu espero que sim – Abuu apanhou a carta, identificando a marca do casco do chefe. Quebrou o lacre como a uma barrinha de chocolate, desdobrando o papel timbrado. Cervos eram incrivelmente cuidadosos com as impressões em papel, desde os jornais comestíveis até convites para festas do feno.

– O que diz aí?

– Estou lendo, espero que boas novas... Só tenho recebido notícias ruins...

O rapaz ficava cada vez mais tenso conforme seus olhos avançavam de cima para baixo na leitura, até que seu queixo caiu com as últimas linhas da carta. Abuu tinha o focinho mais longo que o normal, gaguejando por falta de adjetivos que definissem aquela mensagem.

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