Caminhos desviados

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–A quele leão é fraco e estúpido. Vai acabar destruindo os enfeites restantes. Eu cortei todo o tecido para os cordões de fitas com minhas próprias garras, você não pode me mandar embora faltando apenas um dia para o Comício.

– Heim? O quê? Não, meu nome não é chouriço – o Organizador de Eventos respondeu distraído. Ele tentava digerir o que um estranho leão do interior propusera. Alterar as ordens do Prefeito é arriscado demais, mas não vejo alternativa, afinal, só o que Tukufu quer - e nenhum dos meus antecessores compreendeu - é ser visto como o leão perfeito. Ainda assim é arriscado demais... – Me chamo Peyisai, e já disse que você está dispensado. Arrume suas tralhas o quanto antes.

– Muito bem – Asani cerrou seus olhos dourados com muita vontade de cravar os dentes no pescoço daquele infeliz, mesmo ele sendo seu superior. – Quando o Prefeito perguntar o motivo de não ter bandeirolas no canto inferior esquerdo da praça, ou da ausência dos cartazes publicitários de seu governo sobre o palanque, diga que Asani mandou lembranças.

Aquilo mexeu com o Organizador perfeccionista. Peyisai engoliu em seco, coçando sua juba - desconfortavelmente comprimida pelo capacete branco - enquanto o leão encardido se afastava ciente que abalara o ego do outro.

– Acho que... não perco nada te segurando até sábado. Tudo bem, velhote, pode continuar com suas fitas. Até porque ninguém se rebaixaria tanto a ponto de trabalhar numa droga dessas – o leão de capacete caçoou, tentando justificar sua cedida. Porém o olhar raivoso de Asani cortou seu sorriso: o leão encardido voltou, rosnando entre seus dentes cerrados. As pupilas dilatadas e as orelhas baixas:

– Não faça isso novamente... garoto.

Depois partiu, levantando poeira com suas grandes patas inferiores. O Organizador respirou fundo e ajeitou seu colarinho, tentando não parecer tenso com o que ocorrera. Todos tinham por indesejável aquele leão, mas poucos ousavam comprar briga com ele. Havia rumores de que, certa vez, um jovem impulsivo tentou arrancar um pelo da juba dele para impressionar a namorada. Isso aconteceu na Praça Churrasco, e, mesmo percebendo a aproximação do rapaz, Asani fingiu continuar adormecido no banco da praça.

Quando o outro estava bem perto, o leão encardido pulou, agarrou o jovem pela cauda e arrancou-lhe a juba tufo por tufo. Peyisai alisou os próprios cabelos, imaginando a dor que tal rapaz deve ter sentido... e se sua namorada continuara com ele depois de tamanha humilhação.

Normalmente sentar-se no fundo do refeitório, onde os olhos dos demais mal lhe alcançavam, era uma atividade reconfortante, mas hoje o leão encardido sentiase indisposto demais para aturar a algazarra dos leões famintos. Seguiu direto para a tenda de descanso que dividia com Abbo, com sua barriga dolorida de fome e suas pernas vacilantes pelo cansaço. Ameaçara seu chefe, e isso não é uma coisa boa de fazer quando se está a um dia do desemprego. Perdido em pensamentos sombrios, o leão olhou ao redor: havia desviado de seu caminho. Estava entre as estruturas de madeira e tijolos que seriam as barracas de comida e brinquedos do Comício, bem longe do acampamento dos funcionários. Quando foi que me perdi? , o leão cabisbaixo se perguntou. Com pouco ânimo, ele retomou a estrada de terra, questionando-se: Quando foi que me perdi? Quando meu orgulho perdeu toda a força? Quando deixei de ser um leão? Quando deixei de ser... feliz?

Ele sabia o momento exato. Ainda filhote, recebera uma terrível notícia que o tornara a criatura amarga e indiferente de hoje...

Depois de muito caminhar, suas patas tocaram a grama aparada onde as barracas se enfileiravam. No caminho, cruzou com um grupo de leões violonistas que dividiam trovas e erva de gato. Quando o viram se aproximar, suas notas soaram mais tímidas e suas vozes perderam o entusiasmo. Os olhares perdidos na beleza da melodia, ao avistarem o leão indesejável, ofuscaramse com a escuridão da raiva contida. Asani os encarou firmemente, receoso de demonstrar o mínimo sinal de medo ou vergonha, apertando o passo para chegar logo em sua tenda.

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