Encontre-me do outro lado

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– Mas isso é de extrema importância, senhor Assistente!

– Entendo, só que o Prefeito está cuidando de assuntos particulares no centro da cidade.

– O senhor precisa avisá-lo! – insistia o Economista. – Segundo meus cálculos, os estoques de ração sofreram um déficit de 15% nos últimos dois meses!

– Deve ser por conta do inverno, Salmini. Espere até a primavera e então refaça os cálculos. Por hora, aconselho que esqueça as fazendas de ração e se concentre em nosso projeto prioritário.

– C-como quiser, senhor Abbo.

A vida na Cidade dos Leões não era fácil de levar. Havia olhos de gato por toda parte, à espreita, focados no novo Prefeito. Ele parecia ser um leão menos agressivo que Tukufu, e de fato abolira muitas das políticas desagradáveis de seu antecessor. Ainda assim era cedo para tirar conclusões, afinal de contas - e principalmente aos olhos dos mais velhos - ele era o filho do traidor. Abbo apanhou um carro oficial, que a levou às proximidades do Banco dos Leões. De lá, a corça-leão seguiu a casco, respirando o ar frio de seu primeiro inverno fora da Cidade dos Cervos. O céu estava encoberto por nuvens pálidas e volumosas, e por toda parte havia gorros de algodão, blazers de lã e casacos de couro. A jovem preferia manter distância das roupas de pele, aquecendo-se com uma jaqueta jeans azul. No meio do caminho ela foi interrogada por seu amiguinho de gravata borboleta:

– Está fazendo um ótimo trabalho, senhorita. Todavia compreende que tal emenda não perdurará? – o ratinho estava sobre sua cabeça, oculto pela densa pelagem da juba de Tan.

– Sim, Ruffles. Eu sei. Mas é tudo que posso fazer no momento. Tenho certeza que as fazendas de carne não sofrerão com nosso pequeno desvio.

– São apenas cenouras e repolhos, senhorita. Crescerão novamente – o pequenino a confortou, dando palmadinhas em sua cabeça.

Na frente do Banco, como combinado, um leão não-mais-encardido os aguardava. Vestia um terno azul marinho, gravata vermelha e uma expressão aborrecida no focinho:

– Meus pelos coçam, eu queria estar morto.

– Não pode governar os leões usando seus trapos encardidos, Asani.

– Não gosto de governar. Eu queria derrubar meu padrinho, e não assumir seu lugar. – o leão puxava seu terno de um lado para o outro, desconfortável com tantas camadas de tecido. – Sempre cuidei do meu próprio focinho, não sou babá de ninguém.

– Falando nisso – a corça o interrompeu, cansada de ouvir suas reclamações diárias –, conseguiu localizar a mãe de Ghofiri?

– Ainda não. Mas tudo é possível, soldados não costumam matar fêmeas. Ah, que coceira! Acho que peguei pulgas daqueles irmãos militares! Eles vieram falar comigo, hoje de manhã, pedindo que os liberasse do castigo. Coloquei os dois para limpar a Fábrica de Sabão abandonada... sozinhos – Asani parou de se coçar, rindo com seus dentes amarelados. – Não sei quando vão acabar o trabalho. Talvez nunca. Não me importo.

– E quanto ao meu pedido, pulguento? – Ruffles tirou sua cabecinha para fora da pelugem. – Já falou com o Secretário de Alimentação sobre as máquinas de ratos?

– Essas coisas são complicadas, tá bom? – Asani respondeu, cruzando os braços e olhando para outro lado. – Não dá simplesmente para tirar comida da boca do bando. Ninguém está preparado para isso, ao menos ainda não.

Abbo sentia pena de seu amigo rato, mas sabia que era verdade: os leões não deixariam de ser carnívoros, e ratos são feitos de carne. O novo leão-mor viu o desapontamento no rosto de sua Assistente e não gostou do julgamento dela.

– Não me olhe com essa cara, corça. Você sabe que meus planos são horríveis, por isso te mantenho por perto, cuidando das chatices do Gabinete. Estamos no mesmo barco, que levará nossos corpos seguros à costa. E quanto à sua Prefeitura? – ele mudou de assunto, embora estivesse pouco interessado. – Parece que você está mais mordida do que eu, tendo duas cidades para cuidar.

– Bom... meu chefe deixou muita coisa para eu resolver. Eu amava aquele velho, foi muito triste perdê-lo de repente – a jovem não contara para Asani sobre seu pai, o leão na Cidade dos Cervos. Isso não faria bem para aquele sujeito problemático e temperamental. – Nem todos estão preparados para ouvir a verdade. Ao que parece, cabe a mim guiá-los para um lar, e decidir quando será a hora certa de contar tudo.

– Não precisa ser orgulhosa, senhorita – o ratinho saltou para o focinho de sua amiga, balançando seus bigodinhos. – Estaremos ao seu lado! Vamos dividir essa carga, e fazer o que for preciso para que seus amigos fiquem bem!

– Tanto faz – Asani tornou a coçar as costas. – Só não esqueçam que é graças à droga do meu cargo que vocês desviam cenouras para o banco. Maldito Azizi, que conseguiu convencer o Parlamento... Não fosse ele, eu não teria reuniões enfadonhas para presidir. Depois de ter assistido de camarote ao fim daquele leão barrigudo, só teria que coçar meus próprios pelinhos.

– Graças àquele maldito é que ainda tens pelos para coçar, leão.

– Ah, cale-se, rato. Acha que aquele leão perfumado fez de graça? Ele vai cobrar esse favor, cedo ou tarde.

Abbo passou pelo Prefeito, indo na direção da porta do Banco dos Leões. Aquela bela e melancólica tarde de inverno pedia uma xícara de chá de capim-santo, o que era um ótimo pretexto para visitar a casa de seu irmão.

– Ué – o leão pulguento roía a própria pata, temendo precisar de um banho com água para se livrar da coceira –, já vai? E quanto à reunião com meu General?

– Isso vai ter que esperar, estou indo visitar Abuu.

– Acha que foi uma boa ideia ter contado a ele sobre tudo? Sobre mim?

– Essa jornada está apenas começando. Se vamos continuar essa história, que seja ao lado de quem amamos.

– Você é quem sabe. Bom, te encontro na Estação Acém, como sempre?

A corça-leão sacou uma chave prateada do bolso de seu sobretudo, enfiando-a no buraco da fechadura. Girou-a com um movimento de cascos, ouvindo vários clics no interior da pesada porta metálica. Depois bastou girar a grande maçaneta em forma de leme para que ela abrisse, rugindo como um gigantesco leão de ferrugem.

– Claro – ela sorriu para o leão. – Encontre-me do outro lado.

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