Ratoeira

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Passaram as horas seguintes dobrando panfletos. Abbo não tinha ideia do tempo decorrido, mas a determinada altura viu que a esfera celeste já se escondia por trás das obras, na praça. A cada panfleto dobrado ela dedicava alguns minutos para admirar o desenho na capa: uma chave pequena e brilhante, como um brotinho prateado; em sua base fora esculpida uma cabeça de cervo, com as galhadas apontando para cima. Sem dúvidas era o alvo de sua busca, e estava em posse do Prefeito dos leões. Tan disse que poderia estar na Prefeitura... Você acertou, velho amigo: não vai ser fácil recuperar nosso ouro.

– Só isso? – o leão encardido ralhou ao ver que seu companheiro não tinha dobrado nem metade da sua cota de panfletos.

– Estou começando a ficar com raiva de você, leãozinho do interior!

– O meu nome é Abbo! – a corça gritou, cansada daquele apelido. Depois de perceber o tamanho de sua ousadia, ela abaixou a cabeça, acelerando o trabalho. – D-desculpe, eu... nunca dobrei tanto papel na vida...

Um pequeno sorriso involuntário brotou na face do outro, que tratou logo de disfarçá-lo com um pigarro.

– Bom... Se for para te aturar pelos próximos dois dias, pode me chamar pelo nome, também.

– Claro, sim senhor – a jovem respondeu, lembrando-se de que não sabia o nome do leão das fitas. – Mas... Qual é o seu nome?

Subitamente o leão deixou cair os cartazes que carregava entre as bancadas, assim como seu queixo.

– Você... Não sabe quem eu sou?

A jovem não esperava uma reação tão dramática daquele leão frio e ríspido. Ele era como uma salada mista: não dava para dizer se tinha alface, rúcula ou jornal até você fuçar no prato.

– Leão do interior, lembra? – Abbo balançou sua peruca-juba, apontando para si própria.

Todo mundo sabe quem eu sou. Ou você não é do interior... ou nem é da Cidade dos Leões. – ele apanhou os cartazes derrubados, levando-os para a bancada de colagem. – Tanto faz. Meu nome é Asani.

–Certo... Asani, então.

– Abbo... – o leão encardido repetiu o nome várias vezes, como quem tenta assimilar um novo problema. – Abbo... hmm... Abbo.

O sol-de-mentirinha já havia sumido no sentido oposto ao qual nascera quando eles terminaram os panfletos. A corça nunca sentira tanta dor nas costas, e todo seu corpo estava molhado de suor. Agora eu entendo o motivo desses leões federem tanto. Havia um balde de água e uma concha ao lado da mesa dos panos na qual

Asani cortava fitas. Esse nome não combina com ele... Asani... Soa formal demais para uma criatura cujas roupas parecem trapos de chão. Ela apanhou a concha, fechou os olhos e bebeu dois goles do líquido morno e amargo, tentando não pensar que dividia aquela água com um leão pulguento.

– Já acabou seu trabalho? – O outro perguntou, usando suas garras para arrancar tiras de um tecido listrado.

– Sim, senhor.

– Ótimo. Vamos levar tudo para o novo Organizador. Ele está concluindo o palanque, ou sei lá o quê.

Abbo já tinha visto o novo Organizador de Eventos, mais cedo - o leão que lhe negara cenouras do carregamento dos ratos. Ele não parecia ser um leão flexível, de modo que tratou de rever as dobras dos últimos panfletos, tendo a certeza de colocar os mais perfeitos no topo dos fardos. Asani os amarrou com uma fita: o leão levaria ambos os fardos, deixando a corça empurrar o carrinho de mão cheio de cordões de fitas coloridas. A tarefa parecia simples, mas a jovem quase lesionou a coluna ao tentar erguer a carrinhola.

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