Ruffles

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– Mas o que isso significa?

Mesmo distante do refeitório, o cheiro de carne ainda alcançava as narinas de Abbo enquanto leões satisfeitos rugiam com suas barrigas cheias do lado de fora da tenda. A corça esfregou os olhos sem conseguir acreditar que, na sua frente, estava algo tão contraditório quanto um leão comendo berinjela. Depois de devorar o legume ele deu uma espiada dentro do saco de estopa, examinando seu conteúdo:

– Terei que arranjar mais comida em breve. Só tenho um repolho e dois pepinos, não dá nem para o almoço de amanhã – depois ele lançou um olhar severo para a corça-leão, que ainda segurava seu legume – Vai comer isso ou não? Se não for, devolva. Não tô podendo jogar berinjela fora, não.

A corça até pensou em devolver o vegetal roxo e macio, mas tinha um cheiro tão bom... e ela não comia nada havia muito tempo. Arriscou uma mordida, e outra... e em um instante devorou a berinjela com vontade. Estava tão doce que a jovem lambeu os cascos, desejosa por uma repetição.

– Sabia que tinha algo familiar em você – o leão disse, ajeitando o saco de legumes com suas outras quinquilharias no canto da tenda. – Percebi assim que entrou na minha tenda. Mas qualquer um teria notado que é vegetariano, basta olhar pra sua cara de doente.

– E-então você não vai me... me... – a jovem não teve coragem de completar a frase.

– O esquema é o seguinte: o Organizador de Eventos não foi com a sua cara e te empurrou para mim. De agora em diante, ninguém mais irá com a sua cara. Então, se quiser um lugar para

dormir, terá que arranjar vegetais para a gente.

– O quê?

O leão voltou a se sentar na cama de baixo do beliche. Coçou a orelha com a pata esquerda - provavelmente pulgas ou coisa assim - e afastou os lençóis de sua cama, tão sujos quanto os panos que vestia.

– Tem umas pequenas fazendas de ração, na periferia – ele continuou, sem dispensar mais atenção que o necessário com a Abbo-leão. – Eles cultivam verduras e legumes para os criadouros da região. Não é inteligente roubar deles, disso eu sei. Se pedir educadamente... vai ganhar um tapa na fuça. Mas dá para vasculhar o lixo deles, de madrugada.

– Você quer comer verdura do lixo? Que nojo! – foi a reação instantânea da corça. Como Secretária da Prefeitura dos Cervos, estava acostumada a comer repolhos recém-colhidos da horta, sopas quentes e talos bem verdinhos de agrião. Até ouvira falar que durante as reuniões do Gabinete, no apogeu da Cidade dos Cervos, eram servidos biscoitinhos crocantes de mel e farinha de milho, às vezes acompanhados de geleia de morango.

– Meu filho, de onde você acha que veio a berinjela que você acabou de mandar para dentro? Do açougue? – o leão rosnou. Abbo sentiu certa náusea ao saber disso, embora seu estômago se recusasse a devolver a refeição. – Agora vai dormir. Amanhã eu penso no que vamos fazer quanto a comida.

O leão se virou, ficando de frente para a lona tremulante e de costas para a jovem imóvel. Ela ficou ali em silêncio, observando as costelas do outro subindo e descendo com sua respiração, sentindo-se a criatura mais deslocada do mundo. E agora, o que eu faço? Fujo? Fico? Finjo de morta?

– Deita logo – o leão começou a ficar com raiva por seu companheiro não ter se recolhido.

Abbo obedeceu. Aproximou-se do beliche, sentou na cama de baixo e deitou ao lado da fera peluda, aconchegando-se em suas costas. O outro, por sua vez, virou-se irritado:

– Na cama de cima, gênio! – seu rugido quase estourou os tímpanos da corça.

– Desculpe, desculpe! V-você não tinha especificado!

O Banco dos LeõesOnde histórias criam vida. Descubra agora