O monstro no escuro

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Ninguém costumava ir aos limites da cidade. Não havia nada por lá, e o último mercado ficava a muitos galopes de distância. Os cervos da periferia tinham uma floresta de espinheiros entre suas casas e o mundo além, com raízes profundamente cravadas no solo e tentáculos pontiagudos que se erguiam mais alto que qualquer galhada.

O velho Prefeito não conseguia se equilibrar sobre o banco de uma bicicleta. Quando tinha que percorrer uma distância muito longa, Tan usava o serviço de transporte da Cidade dos Cervos. Ele e sua Secretária aguardaram na frente da Prefeitura até que uma carroça de feno vazia estacionou. O transporte era puxado por um rapaz muito magro, com a camisa suada por baixo do arreio e com fitas vermelhas em seus chifres.

– Desculpe o atraso, Prefeito, mas estávamos sem carros. Tive que improvisar seu transporte, hoje.

– O que aconteceu com as carruagens? Foram todas alugadas?

– Não, queimadas – o cervo respondeu arfando. – Ontem fez um tremendo frio, não teríamos passado a noite de outra forma.

Tan acenou com pesar, compreendendo a situação. O condutor o ajudou a subir na carroça, depois ofereceu seu casco para Abbo. A jovem sentiu o suor frio do outro e se roeu de remorso ao ser carregada todo o trajeto. Logo a carroça ganhou velocidade, percorrendo as ruas de terra batida. Eles passaram pela Rua Hortelã, onde os vendedores de chá costumavam dispor de várias ervas de infusão, e ficaram parados meia hora em um cruzamento entre a Trote e a Galope.

– Parece que teve uma batida de bicicletas. Vamos ter que contornar pela Estrada Peluda.

– Tudo bem – concordou o Prefeito –, mas evite a saída para a Pontas e a Eucalipto. Quero chegar à fazenda antes do meio-dia, e sei que a essa hora a feira fecha as ruas.

– A propósito – o cervo que os conduzia perguntou, tentando puxar assunto para se distrair do cansaço –, o que os senhores farão na velha Fazenda de Cenouras?

– Inspeção de rotina, essas coisas – Tan desviou o olhar.

Ele não queria dar mais detalhes pelo bem da missão, e Abbo sabia disso. Então a jovem corça mudou de assunto.

– Você vai participar do Festival da Primavera, uh...

– Laini – o condutor respondeu com um meio sorriso nos lábios. – E não, nem pensar.

– Mas... Por que não?

A carroça alcançou seu destino. À frente deles estava a Fazenda de Cenouras, com suas construções rústicas de madeira: a casa principal, grande e espaçosa; um silo de armazenamento rachado, ao lado; um depósito de ferramentas vazio, cercado por terra nua. Os campos de plantação estavam tomados por mato não comestível, e para além deles só havia espinheiros.

– Vou deixar vocês aqui, espero que não se importem – Laini se desculpou, com as orelhas murchas e suor escorrendo pelo focinho. Lufadas quentes saiam de suas ventas, dispersando-se no ar frio matutino. – Aquele lugar... Eu não gosto muito de lá. Vocês sabem, por causa dos boatos.

– Não tem problema – o Prefeito entendeu, apoiando-se nos ombros do cervo para descer da carroça. – Eu também não.

Abbo desceu sozinha, voltando em seguida para apanhar a maleta do Prefeito. Tan tirou do bolso da calça um pequeno maço de dentes-de-leão, estendendo-o ao condutor:

– Sei que não é muito, desculpe-me por isso.

– Não tem problema – Laini recebeu o pagamento, guardando todas as flores amarelas em uma bolsa em sua cintura. – É mais do que se ganha entregando jornais. Tenha um bom dia de trabalho, senhor!

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