Ela não compreendia o fato, tampouco entendia a si mesma. Emily provou para si que era capaz de ser livre, exatamente como sempre quis. A liberdade de um sentido mais literal, imaginava ela. Se jogar a frente do mal para ter o bem nas mãos não tinha preço. Mas parece que alguém não estava satisfeito com isso. E ela não sabia o nome desse alguém.
Os dias foram tomados por um escuro borrão em sua mente. Seus pensamentos eram anuviados, repelidos por um sentimento de absoluta aflição. Por vezes a imagem daquele jovem a tirava toda concentração. As aulas na medicina se tornavam entediantes, mais do que supunha que eram, tornava-se um rito de misericórdia, uma pintura abstrata com sofríveis danos. Os piores. Às vezes era tomada por um sonho onde se atirava novamente a frente do bandido, via o rosto do jovem e dessa vez ele a tomava nos braços, embalando-a de um jeito meigo, seus braços ao redor de sua cintura com dedos firmes e os olhos preocupados a fitando. Dessa vez ele a agradecia, a tratava de um modo que jamais nenhum garoto a tratara antes e segredava todas as suas inseguranças a ela, partindo do princípio de que ela havia salvado seu dia. Mas tudo era um sonho, não passava de uma chance perdida que voara para longe, numa distância imensurável, jogado no tempo que outrora pesava suas felicidades.
Emily Buster se tomou pensando na possibilidade de retornar ao viaduto Grand Mary, encontrar com o estátua-viva e convencê-lo de que ela estava certa. Porém tentar convencer o jovem de que estaria certa seria um perda de tempo. O perdão não viria da parte dele, nem agora nem depois. Ela havia se arriscado, se jogado a frente do bandido sem pensar nas consequências. O jovem apenas continuou parado, ali, na sua plataforma de trabalho, sofrendo minimamente com o acontecimento.
Mas os dias tinham se tornado difíceis. Norman Buster havia se envolvido com a polícia e pela terceira vez Ivy teve que se deslocar até a delegacia para livrar a pele do filho. Na mesma noite, após todos irem dormir, Norman saltou pela janela, tomou a mercedes e partiu para encontrar com os amigos na ponte Don Murray. Enquanto isso na noite silenciosa Emily novamente, acordada, refletia sobre o episódio no viaduto."Eu deveria voltar lá." pensava, criteriosa. "Não posso deixar que ele mantenha uma imagem negativa de mim. Eu fiz por ele o que teria feito por qualquer um."
Emily tinha doze anos de idade quando foi ao lago Bessy com Teodore e Jessy, os amigos do antigo colégio situado a oeste da Carolina do Norte. Teodore tinha todos os motivos para considerar Emily uma pessoa especial, considerando que ela já havia salvo sua vida mais de uma vez. Uma delas foi durante uma aula de escavação. A professora os levou para uma aula nas minas e Teodore carregava uma câmera enorme consigo. O garoto subiu em uma rocha para focalizar as marcas no teto. "Teo, desce! Agora!" mandou Emily, mas o garoto virou, sorriu, e continuou a apontar a lente da câmera para o teto. "Você viu essas linhas de marcas, Emily? São perfeitas!", dizia ele com um pé na rocha e o outro em um toco de madeira saindo da parede. Emily ouviu o barulho da madeira ruindo. Subiu na rocha e quando menos esperou a madeira quebrou e a perna direita do garoto deslizou pela pedra. Ele soltou a câmera e ela quebrou quando chegou ao chão. Teodore escapou de acertar a cabeça em outra madeira mais abaixo quando Emily segurou-o pelo cinto. O garoto era magro demais e era fácil para qualquer garota erguê-lo e pô-lo nos ombros. Outra vez que salvara a vida do garoto tinha sido um ano depois quando valentões tentaram alcançá-lo na saída. Teodore não era de se envolver com aquele tipo de gente e Emily sabia muito bem disso. Todos os caras tiveram uma surpresa na saída, mas não era Teodore, e sim o diretor. O diretor Meyer tinha respeito por todos, porém cultuava um respeito maior pelos Buster. E se a filha deles o ordenava alguma coisa, quem seria ele para discutir?
Um ano antes, no lago Bessy, Emily, Teodore e Jessy encontraram um corpo boiando na água. Teodore queria estar com a câmera para registrar aquele momento, mas desde as escavações não havia comprado outra. Jessy se distanciou do local mais rápido do que Emily percebera. A garota correu para a estrada, onde encontrou um carro que cruzava a via west e acenou. O carro parou e o motorista desceu, observando os rostos de três crianças amedrontadas. "Alguém está no lago." disse Emily. O homem encarou os três como se perguntasse o que havia de ruim naquilo. Mas acabou compreendendo algum tempo depois do que eles falavam. Alguém morto estava no lago. O homem chamara a polícia local, que deslocou o corpo até o instituto mais próximo. Naquele dia o policial fora deixar cada um deles em suas respectivas casas. Os pais de Emily Buster não aprovaram em nada que a filha estivesse na companhia de duas crianças com "condições diferentes" das dela. "São pessoas que você tem que deixar de se envolver." dizia o pai. "Você pode muito bem se relacionar com pessoas de nossa categoria social, Em. Os meninos e meninas da aula de música são perfeitas companhias para você." reiterava a mãe. Emily repugnava o comportamento dos pais em relação a isso, e passou toda a vida escutando tais coisas.
Ivy Buster soube através do meio mais improvável sobre o ocorrido no viaduto Grand Mary. Anne McBury era uma inglesa, casada com Richard McBury, que conhecera Ivy Buster em uma loja de vestidos há alguns anos. Nada era secreto quando ambas se encontravam para um chá. Anne provava ser uma perfeita entusiasta de vidas alheias. E naquele dia Anne vira Emily no viaduto, se jogando a frente de um louco correndo com um chapéu de moedas nas mãos. "Esta não é a filha dos Buster?" apontara Richard, o marido. "Exatamente, Rich. Que coisa deplorável! Esta garota se prestando a um papel desses. Ivy não gostará nada de saber disso!". Naquela tarde Anne contara tudo para a amiga durante um chá.
Emily havia pensado em visitar Andy para que juntas fossem novamente ao viaduto. Mas Ivy Buster tinha princípios, como ela mesma se gabava em dizê-los.
- Não nos damos com a escória, Em, e você sabe muito bem disso! - dizia em alto e bom som Ivy, por trás do ego inflado.
- Eu não penso dessa forma e você deveria saber disso mais do que qualquer um! - rebateu Emily, encarando a mãe como uma imensa muralha que precisava ser derrubada. - Você não tem direito nenhum de me proibir de fazer o que eu quero!
- Experimente me desobedecer para saber o que lhe acontece, Em! Você tem que entender que criamos uma filha para se envolver com...
- PARA COM ISSO! - o grito de Emily envolveu todo o quarto, escapando pelo corredor e se dirigindo à toda a casa. - Seu modo de falar a respeito disso me enoja, mãe! Quem é você para tratar disso com essa frieza e com tanta falta de compreensão?
- Nada do que você falar vai me convencer do contrário! - Ivy Buster se virou e saiu do quarto, deixando Emily desolada para trás.
Emily tinha tudo para obedecer Ivy e ficar exatamente onde estava, engolir tudo aquilo a seco e seguir aquilo como fazia quando tinha doze anos de idade. Mas estava madura o suficiente para confrontar quem quer que fosse para seguir seus caminhos. Ela saiu do quarto logo em seguida, cruzou o corredor, descendo as escadas e se dirigindo à sala de estar, onde estava a mãe na companhia de Anne McBury, rindo. Quando Ivy viu Emily cruzar a sala, se ergueu da cadeira e questionou:
- Aonde pensa que vai?
Emily poderia respondê-la, dizer que não era de interesse da mãe aonde ela ia ou o que ia fazer. Mas apenas continuou a caminhar para a porta, e não parou até tomar um BMW na garagem e sair dali em direção ao viaduto Grand Mary. Nem mesmo brigar com a mãe a impediu de sorri enquanto dirigia.
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...