A casa 312 era uma bela e tradicional moldura de uma moradia inglesa. A fachada era suavemente pintada num rosa lúdico, onde antes padecia uma pálida cor sobre os tijolos. Apesar de ser a mais bem admirada casa da Rua FellsBender, seu projeto não chegava a um único andar, enquanto havia outras no mesmo quarteirão que mais pareciam pequenos apartamentos dominicanos.
Entre uma e outra, jardins podados e árvores com galhos retorcidos e folhas começando a amarelar ao se prepararem para o outono, dividiam o terreno. A 312 ficava entre uma bela macieira, com o tronco ultrapassando seu telhado, e um espaço de cinco metros quadrados de arbustos. Uma senhora de sessenta e cinco anos abriu vagarosamente a porta para dois jovens que estavam ali, de pé, na varanda, a encarando como se estivessem perdidos. A garota sorriu e a abraçou afetuosamente.
Jack imaginava a senhora Kemble mais velha do que realmente aparentava ser, com rugas e corpo curvado; mas ela tinha um belo perfil de uma dama natural da Inglaterra, com seu sotaque carregado, suas linhas de expressão carregadas de um majestoso sinal de felicidade e delicadeza, erguendo a xícara de chá e tomando um gole a cada cinco minutos.
- Jeyne, eu quero apresentar-lhe Jack. - Emily deu as honras. - E Jack, esta é Jeyne, minha antiga professora de piano e ainda minha melhor confidente.
- Oh, pare com isso, Emily. Nos dávamos bem como duas mulheres sensatas, mas sempre lhe disse que você tem uma facilidade grande em demonstrar afeto por qualquer um. - Jeyne deu um risinho acanhado para a garota, dirigindo a Jack um olhar anfitrião. - Prazer Jack, sinta-se à vontade no meu recinto.
- Eu agradeço, senhora Kemble. - respondeu Jack, e foi seguido de um aceno de mãos que a mulher fez:
- Ah, pare com isso, filho... me chame de Jeyne. Assim como Emily. Jeyne. - e com isso ela voltou ao chá, continuando uma conversa amistosa com Emily.
Ele sentiu-se mais à vontade.
Não que Jack estivesse se sentindo desconfortável, mas achou que Emily e Jeyne tinham mais o que conversar do que ele ouvir. Ele se pegou pensando nos pais. Queria chegar em casa e dizê-los que tudo estava bem, visitar Terency e contar o que tinha acontecido, e consequentemente, se desculpar pela motocicleta. Por um segundo Jack pediu a Deus que o grupo de Norman tivesse deixado a motocicleta exatamente onde estava, assim teria uma chance de Terency encontrá-la e fazer o conserto. Ele era muito bom mecânico, Jack sabia que ele poderia dar um jeito. Mas logo seus pensamentos foram tomados pela lembrança ruim. O atropelamento. Foram os segundos mais angustiantes de sua vida, os olhos pareciam enxergar o mundo girar. Era como se ele estivesse em órbita sideral, com a sensação de estar em meio a um lúgubre estado de loucura. Sua cabeça rodava e rodava. Ele levou a mão ao pescoço, e os braços de Big Roy pareceram retornar e o sufocar mais uma vez. Outra lembrança ruim, em um curto espaço de tempo. Ele despertou do transe de imagens rotacionais em sua mente quando ouviu a voz de Emily dizer seu nome: "Jack! Venha... Jeyne o mostrará também."
Então eles seguiram para os fundos da casa de Jeyne Kemble. Tudo era tão limpo e tão cheio de vida. Os cristais sobre os móveis, alinhados a porta-retratos de vidro metalizado, o lustre que emitia um som de cristal tocando em cristal com o sopro do vento, tudo era um imponente jogo de sutileza. Um raio de sol embarcou em uma das frestas da cozinha, iluminando os jarros de metal posicionados de maneira alternada no armário. "Mamãe adoraria conhecê-la", pensou Jack. Mandy Field era fascinada por coisas bem arrumadas e limpas e Jack conhecia a mãe muito bem para saber que se pusesse os pés naquela casa elogiaria Jeyne Kemble por horas a fio.
Ao final de um corredor Jack viu que Jeyne entrou em uma espécie de quarto-toca, Emily logo atrás. "Venha Jack, por aqui!". As paredes eram revestidas de um material parecido com cobre, e ele não entendia o porquê. Logo mais a frente quem entrava se deparava com um piano branco no meio de uma sala retangular. Vários quadros nas paredes enfeitavam o ambiente, pinturas modernistas, lindas aos olhos, com cores vivas e traços bem delineados. Uma mulher chorando sob lençóis-fantasma, um guerreiro escalando uma torre em busca da felicidade, um jardim com folhas sendo levadas ao vento, um garotinho pulando corda, uma garotinha nadando em um rio. Essas e outras tornavam a sala retangular um ambiente prioritário de imaginação. Jack, ao entrar pela primeira vez ali, não desconfiava do que poderia acontecer.
- Emily, conduza Jack. Já sabe como... agora dancem com os olhos. - a voz de Jeyne era suave como o sussurrar do vento nos moinhos. Emily desligou as luzes, enquanto Jeyne tomava o assento do piano, pousava os dedos nas teclas e os tocava delicadamente.
Uma música elegantemente tocada refletia nos corações assim como a lua reflete no mar calmo. Jack não via mais os quadros em meio àquela escuridão. Eles estavam de pé, um pouco recuados do centro, quando a magia começou. Seguido ao som do piano, embalando na melodia de um sonho, os quadros criaram vida. Cada linha, cada cor, se realçava com a música. Era como se ela tivesse influência direta com os quadros. Cada tecla tinha uma conexão com as pinturas. Os cabelos do menino pulando a corda refletiam um dourado na escuridão quando tocava uma tecla, o belo vestido da menina brilhava num vermelho vivo quando tocava outra, as folhas deslizando no vento em um jardim pareciam bem mais outonais com a luz amarela que refletia delas. No início da canção tudo ainda estava como estrelas brilhando em um céu noturno, uma de cada vez. Bastou alguns minutos de melodia para que as pinturas ganhassem vida própria. Algumas sendo iluminadas de uma vez só, enquanto outras brilhavam respeitando o quadro anterior. Até haver o momento em que a sala emitia um brilho perceptível na escuridão. Era como um véu cromático se estendendo em todo o ambiente. Agora Jack via Jeyne no centro, ainda tocando o piano, e Emily, ao seu lado, sussurrando:
- Diga-me! Isso não é fantástico?
- Como? - Jack não conseguia tirar por muito tempo os olhos dos quadros. - É incrível!
- Jeyne embutiu fios de energia nos quadros, que estão diretamente ligados ao seu piano. Então acontece um movimento de refração. As teclas permitem que o som percorra até os fios presentes nas pinturas, e com isso conversem entre si. Não é sensacional? - ela sussurrava ainda mais baixo, tentando aproveitar o máximo tudo aquilo.
Jack concordou, focado no resto da melodia. Jeyne retomou a compostura, de olhos abertos, quando a última nota foi tocada e o brilho nas maçãs em uma cesta se apagou. Emily acendeu a luz do cômodo e ali estavam, como simples pinturas normais, os quadros.
- Espero que tenha apreciado, Jack. - esperou Jeyne, ansiosa pela reação dele.
- Eu adorei. - respondeu. - É como se nos embalássemos em um sonho infinito, tocando as estrelas que nos rondam.
- É exatamente isso que quero ouvir! - Jeyne fez uma expressão de contentamento e em seus olhos apareceram as primeiras rugas, antes camufladas por sua beleza imparcial. - Eu agradeço por isso, Jack. Não é à toa que minha menina se encantou por você!
Jeyne indicou Emily com um olhar aprovador. Jack encarou-a, e Emily estava tão vermelha quanto o brilho saído da maçã minutos atrás.
- O que foi, filha? - disse Jeyne. - Vocês são parecidos, e quanto a isso eu sinto! A verdade está nos olhos de ambos!
- Jeyne! - repreendeu Emily. - Que deselegância!
A mulher sorriu, saindo do piano e retornando para a sala de estar. Jack e Emily seguiram logo atrás, sem dizer nada um para o outro.
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...