Não eram azuis, eram vermelhos, como imaginou.
Um tecido sobre o outro, alinhados, quase o dobro de peças que fizera na semana anterior. Seus dedos estavam tomados de uma espécie de desconforto infeliz. "Deixarei essas peças prontas para a senhora Basker" pensou ela. Estava cansada naquele dia, pela primeira vez achava realmente que as horas que passava no viaduto Grand Mary com aquela roupa, acessórios, a pele recoberta de cinza e estática, a estava causando problemas. Todos esses anos, pensou, todos esses anos foram excelentes. Michael... meus filhos... realmente foram maravilhosos. Não sei se conseguirei seguir...
Enquanto retornava o olhar para a quinta peça ainda em estoque, levando-a até a máquina, acertando alguns pontos do tecido, tornando-a mais flexível. Um belo vestido vermelho. Mandy tinha mãos habilidosas para vestidos. Eram o ponto alto de suas vendas. Uma vez quando conseguiu fazer um conjunto de duzentas peças sob encomenda para a ARTHUR & SERAPHYNE, sendo elogiada pelos proprietários, que usaram suas peças durante um mês em destaque nas vitrines, Mandy ficou feliz, contente com o trabalho. Era uma das poucas vezes na vida onde uma mulher pode olhar para o presente e regozijar-se agradecendo aos céus.
Nem ela nem Michael tinham qualquer condição de pôr Jack em uma universidade, tampouco Clarice. Era uma das vezes em que Mandy encarava a si mesma no espelho, ou nas pontilhadas incessantes da agulha nos tecidos, e se culpava.
* * *
O ano era 1984 e a Igreja Beneditina Do Sétimo Dia tinha as portas abertas para que os fiéis entrassem e fizessem suas preces. O espaço era o suficiente para abrigar os devotos que moravam na região. Naquele dia o número de pessoas que estavam ajoelhadas a frente de seus assentos, as mãos coladas ao rosto, realizando a reza diária, tomando nota de suas agonias ou de seus agradecimentos, se envolvendo no manto sagrado divino, já era superior ao do dia anterior. Cada uma delas estava fechada no próprio silêncio, ouvindo apenas o próprio sussurro. Uma delas era Mandy Eneven.
Todos os dias, no mesmo horário, Mandy visitava a igreja que antes tinha sido diariamente frequentada pelos pais. Antes do "Grande desapontamento", como eles diziam.
"Como posso retornar àquele local, Damond?" Mandy ouvia a mãe reclamar.
"Você está certa! É tudo culpa minha... culpa minha..." maltratava-se através das palavras o pai.
Tinha momentos em que via os pais culparem Deus pelo que tinha acontecido, mas se preservava em seu quarto como se nada ouvisse, sentindo falta de Charlie.
Oh, meu irmãozinho, me perdoe, me perdoe...
Sempre havia uma parte da culpa disseminada no ambiente, distribuída para cada um deles. Mandy sabia que não poderia prever o que aconteceria, mas se culpava como se fosse a razão daquilo tudo.
O Santorian era um rio que corria do lado leste de Asperal e desaguava no oeste, sempre fazendo sinuosas curvas que não se ligavam a nenhum afluente. As férias de verão de 1973 estavam chegando ao fim e pela margem norte corriam duas pessoas, uma delas era um garotinho de cabelos negros tocando os ombros.
- Pesque as folhas amarelas, Charlie! - comandava Mandy e o garotinho apanhava do chão as folhas ressecadas em meio as verdes.
Apanharam o bastante para cobrirem uma raiz descoberta de uma árvore, repor terra ao redor e deixá-la protegida novamente.
- Vamos, Charlie. Papai está nos chamando... - Mandy, a garotinha de quatorze anos, segurou nas mãozinhas do irmão e o levou de volta à tenda dos pais. Retornaram para casa, uma cabana que não ficava muito longe dali, na verdade era do outro lado das figueiras, tinha um acesso livre para o Santorian.
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...