10.Jack

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Jack sentiu uma sensação estranha, como se uma lâmina o penetrasse o estômago.

Já experimentou sentir isso antes. Quando caiu de bicicleta pela primeira vez, quando atravessava a rua Bentoir em direção à calçada da doceria dos Wilgard. Quando o pai passou mal durante os primeiros dias como estátua-viva, onde o ponto era na calçada do edifício Platinum. Mas agora experimentava uma sensação de dor aguda diferente. Era como se o abdome não pudesse mais ser contraído, enviando a dor lancinante para o peito.

Parou de escrever e ficou pensativo. Um medo o corrompeu como se alguém que ele tivesse apreço estivesse sofrendo. Desceu as escadas e se deparou com a mãe separando os tecidos claros dos escuros, pondo-os na bolsa de retalhos e separando as agulhas. A irmã estava belamente arrumada, possivelmente para encontrar o namorado. Ela o viu ali, sobre o quinto degrau, e sorriu. O pai cozinhava algo na cozinha, o que pareceu a Jack, pelo cheiro, ser sopa de legumes. Não era nada. Todos estavam bem.

- Está tudo bem, querido? - perguntou Mandy Field. - Aconteceu algo?

Jack não quis preocupar a mãe com mais uma de suas sensações esquisitas. Então negou:

- Não, está tudo bem. Apenas... senti o cheiro da sopa do papai. - se preparou para subir ao quarto novamente quando a mãe lhe sorriu e voltou aos tecidos.

Mas o pai apareceu no corredor entre a sala e a cozinha, uma panela nas mãos e um jeitoso modo de tratar Jack:

- Está servido filho? - ele indicou a sopa nas mãos, que liberava um vapor quente no ar, espalhando um cheiro delicioso. - Posso fazer duas porções.

- Não, pai. Está tudo bem. Só queria dizer que o cheiro da sua sopa me agrada. - Jack então pôde retornar ao quarto, enquanto o pai voltava à cozinha com a panela em mãos.


Era início de noite quando Jack chegou à oficina de Terency Milton. Os Milton eram uma família de árvore genealógica extensa. Os bisavós de Terency participaram da Terceira Guerra Anglo-Afeganistã. Os ingleses, fortalecidos contra o governo de Amanullah Khan, rei do Afeganistão, obtiveram sucesso durante a guerra; Joseph e Edward Milton, irmãos de sangue, foram para a guerra do lado dos ingleses. A força britânica acabou se destacando e Amanullah acabara caindo. Terency sempre evidenciava a história para Jack.

Naquela noite, quando Jack encontrou a oficina de Terency com luzes ligadas e o motor de uma moto roncando alto, sabia que o amigo estava testando mais um de seus talentos.

- Gostei desse. - afirmou Jack, enquanto passava pelas peças guardadas nos caixotes de madeira que serviriam na montagem da motocicleta testada. - Não é um som tão agressivo, mas não é nada discreto.

- Desde quando você entende de motocicletas? - Terency se ergueu e fez questão de abraçar o amigo que não via há uma semana.

- Não tanto quanto você, amigo, mas ainda assim sei. - os dois riram, e Jack viu a pontada que sentira mais cedo ir embora.

- Esta parece que não quer se desenvolver. Vou tentar trocar os pistões e a culatra. Os óleos não estão resolvendo. - Terency apertou um parafuso aqui e ali, revertendo algumas peças, unindo uma na outra ou simplesmente trocando-as. - Então? Você não veio aqui apenas para comparar seu entendimento de motos comigo, ou veio?

- Claro que não. Vim porque preciso de conselhos. - Jack sabia que Terency era a pessoa mais indicada para falar sobre alguma coisa com ele. Principalmente relacionamentos.

- Conselhos? - o rapaz o olhou de relance. - Será que detenho este poder, mr. Field?

- Espero que sim, porque sei muito bem como você resolve esse tipo de situação. - disse Jack.

- Olha só... você ergueu a bandeira amarela do clube dos babacas, Jack! - desde que chegou essa foi a primeira vez que Jack riu para valer.

"Clube dos Babacas" tinha sido o nome que ele e Terency tinham usado para uma Q.G. em uma velha caverna nos limites de Oenix, quando crianças. O fato inicial que Jack lembrou foi de uma garota rabugenta que invadiu o clube e lançou fogo em tudo quando descobriu que eles tinham um clube. A menina se chamava Valery, e tinha invadido e ateado fogo em outros três Q.G's de garotos do ensino fundamental. A bandeira amarela citada por Terency fazia parte da panóplia de outras sete do clube. A vermelha era o grau mais alto da coragem de um escoteiro, enquanto a amarela representava o grau mais baixo, quando um deles não sabia nada a respeito de qualquer coisa masculina.

- Não é esse bem o caso. O fato é que... eu conheci uma garota. - disse Jack, vendo que o amigo logo se interessara pelo ocorrido.

- Isso é bom. - disse Terency. - Você acabou de levantar a bandeira azul.

- Mas eu não sei se devo seguir em frente. - afirmou Jack, o que fez o amigo parar de analisar peças, enxugar as mãos de graxa em um pano velho:

- E... você retornou para a bandeira amarela! Como assim não acha se segue em frente? Com certeza deve seguir em frente!

- Acontece que o problema não sou eu ou ela. Os pais dela que talvez não sejam... como ela, se você me entende!

- Entendo. - Terency pensou um minuto. - Se esse for o caso, então não acho que deva namorar com os pais dela.

Jack estranhou o que ele dissera, franziu a testa e ficou estático, analisando a resposta. Então Terency concluiu:

- Jack! Você está iniciando uma amizade com essa garota, não com os pais dela. Está ganhando interesse por ela e não pelos pais dela. Siga em frente, esse é o meu conselho.

Terency Milton tinha um modo peculiar de resolver as coisas:

- Por ora, acho que você deve criar coragem para isso. Então, nada mais justo do que subir em uma dessas e voar, meu amigo. Voar.

A moto cross  que Terency apontava tinha uma pintura gasta, mas parecia inteira. Jack sorriu e tomou-a. Pôs o capacete, o que ficou levemente frouxo em sua cabeça. A pista improvisada que dava acesso à oficina de Terency Milton era uma longa faixa de terra que dava para a estrada norte. Ele atingiu o fim de pista num minuto. Adorava a sensação de vento no rosto e do poder da adrenalina nas mãos. Tinha escurecido bem mais desde que chegou, mas a luz do farol iluminou boa parte da estrada. Ele acelerou e o barulho do motor rugiu no ambiente, enquanto a poeira era deixada para trás. Esse era o momento em que se sentia realmente liberto, como se a alma se deslocasse para fora do corpo com a adrenalina. Só não contou em ir tão longe quanto imaginou. Na faixa que dava fim a estrada de terra e início ao asfalto, a moto tombou numa freada rápida de Jack ao bater em algo na pista. O mundo girou e Jack sentiu o impacto dos ossos no asfalto, ouviu o barulho da moto se arrastando na estrada e em seguida o barulho de motores vindo. Motores de ronco alto. Não eram motos.

Jack conseguiu se erguer, se localizar e entender que tinha sofrido um acidente. Algo tinha aparecido na estrada. Foi inevitável. Localizou a moto que estava a dez metros de distância dele, caída e um pouco destroçada. Uma tropa de carros, três grandes caminhonetes, vinha pela pista. Pararam e delas desceram seis a sete rapazes de jaqueta e botas espinhentas. Com as luzes das caminhonetes Jack pôde perceber o que tinha atingido na pista. Estava a poucos metros dele. Era um outro rapaz, com as mesmas vestes do grupo que estava agora preocupado e chamando-o pelo nome: "Ryler! Ryler!".

Não muito longe dali um carro, provavelmente de Ryler, estava parado no acostamento. Talvez estivesse quebrado e o jovem precisasse pedir alguma ajuda ou mesmo esperar por seu grupo nas caminhonetes, quando Jack o atropelou. Jack ainda estava no chão quando um deles se aproximou. Tinha uma tatuagem de escorpião acima da sobrancelha esquerda.

- Sabe o que você fez, babaca? - perguntou, em tom agressivo. - Ryler pode estar morto. E sabemos que foi você quem fez isso!

O rapaz tirou com força o capacete da cabeça de Jack. Ele sentiu o pescoço estalar e em instantes estava cercado pela maioria deles. Um de jaqueta moderna e cabelos loiros veio pela esquerda e todos abriram passagem.

- Você está ferrado. - disse o que parecia ser o líder de todos eles. Ele dirigia a maior caminhonete.

De todos ele era o único que tinha uma placa com o nome no peito da jaqueta. Jack encarou-o. Nenhum sinal de Terency. Enquanto isso ele desejava que Norman fosse piedoso.


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