52.Alfred

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Em uma das mãos segurava um envelope lacrado, os dizeres "Oficial - Não abra se não for especificado" talhado atrás. Na outra uma caneta de prata originalmente da Alemanha. Um sócio da empresa o tinha trazido de presente quando esteve entre junho e julho lá.

Há dias Alfred Buster se sentia um tanto quanto solitário demais. Tudo que tinha acontecido em sua vida só provava sua resistência a fatores improváveis da vida, o colocava a prova diante de tudo e de todos, testava seus limites e suas coerências diante da realidade. Emily tinha seguido um rumo diferente na vida e ele tinha que aceitar isso.

Não posso aceitar. Não tenho que aceitar. Não quero aceitar.

As palavras batucavam insistentes em sua mente, fortalecendo cada vez mais a convicção de que faria o possível para se livrar daquele peso. O peso do enfraquecimento diante de uma situação que sabia que podia reverter. Não tinha criado e alimentado uma filha para que o desse as costas quando pudesse se sentir dona das próprias palavras. Criara Emily para ser uma renomada médica, e não descansaria enquanto não a visse num jaleco, sorridente e satisfeita.

Levou a ponta da caneta ao selo do envelope e puxou, fazendo um rasgo na parte superior. Dentro um papel branco com um brasão destacado em dourado e azul. Alfred contentou-se. Ele conhecia aquele brasão. "O incrível brasão da universidade de Damphill..." falou para si mesmo enquanto o admirava impresso no papel em alto relevo. "Aposto que são congratulações pelo desempenho de Emily no curso. Tenho certeza que terei orgulho."

Ele era o responsável pela parte financeira dos estudos da filha, então se houvesse algum problema, fosse quanto a Emily ou ao próprio financeiro, inadimplência ou fatores morais, ele seria o comunicado sobre a questão.

Passou os olhos pela folha. O comunicado pareceu gritar em seu rosto, sacudi-lo para que viesse à realidade e fugisse de seus sonhos delirantes. O que ele achava, que estava tudo bem e que a filha estaria tranquilamente tendo a boa vontade de sentar-se numa daquelas cadeiras da Damphill e se interessar por todos aqueles assuntos humanos? Seus olhos não poderiam mentir, tampouco o documento. Lá dizia que Emily tinha desistido das aulas e que a ausência tinha excedido, tornando-a uma "aluna-fantasma", como diziam quando alguém sumia por tempo indeterminado dos deveres acadêmicos.

Alfred bufou e afrouxou o nó da gravata. Ele não conseguia respirar.

Você só tinha que fazer isso, Emily. Apenas o que eu queria. Sempre insisti para que seguisse por esse caminho e o que faz agora? Me apunhala pelas costas! Não posso acreditar... isso mesmo que está acontecendo? Não pode ser... você me traiu e isso eu não admito! Nunca vou admitir que qualquer pessoa me traia! Foi aquele verme! Aquele sujeitinho que a tirou de nós e que a convenceu a jogar sua vida fora! Ele! Ele é o culpado! (caminhou até a gaveta da escrivaninha) Ninguém é mais culpado do que ele! Minha filha não será reconhecida como uma Buster derrotada! Não... não vou admitir isso de maneira alguma! (passou o olho pelas pistolas) Norman pode não ser meu filho, mas você é, Emily! Você é sim uma Buster! Você é minha filha... (escolheu uma, a avermelhada) Querer o seu bem para que agora você faça o quê? Sempre foi um sonho que cultivei, sempre... a Damphill! Idiota! É a Universidade de Damphill e você perdeu a cabeça... não vou admitir! (levou a arma até a cintura e guardou-a sob o cinto).


* * *

Alfred encontrou com a mulher nos corredores. Ela tinha um ar solene e o carregou de volta ao escritório:

- Tenho que sair agora, Ivy... - tentou explicar Alfred, mas foi interrompido por ela:

- Escute! Escute! Eu estava certa! Eu disse... eu sempre lhe falei que eu estava certa, desde o sumiço, desde que eu descobri...

- Do que está falando, Ivy? - agora fora ele que a interrompera.

- William. - soltou, analisando o rosto retorcido do marido. - Eu sabia que um dos comparsas do tal Field estava envolvido no desaparecimento! Não foi tão difícil de descobrir. Ouvi quando ele falou com Brandon e o achei suspeito. Não poderia perder a chance! Liguei para os policiais, dei o número da placa da motocicleta onde ele estava e no fim do dia eles me disseram que nada encontraram. Eu não acreditei, claro! Não que eles estivessem mentindo, mas que o tal mecânico que os tinha enganado.

- Então Jack Field tem culpa nisso também? - perguntou Alfred, aborrecido. - O casamento... no fundo eu sabia que ele tinha alguma ponta de culpa nisso tudo, só não queria acreditar!

- Querido... - Ivy o tocou dos dois lados do rosto com as mãos. - Compreende o que esse rapaz fez a nossa filha? A nossa família? Aquela não é mais a nossa Emily, entende, Alfred? Ele a mudou e nada do que dissermos vai trazê-la de volta! Ela está completamente cega por esse... Field!

- Por isso não posso perder mais tempo... - as palavras dele saíram bamboleantes no ar. - Saia da minha frente, Ivy!

- O que vai fazer? - perguntou a mulher, preocupada. - Me diga, Alfred! Diga-me o que vai fazer!

Ele a olhou uma última vez antes de cruzar a porta do escritório:

- Trazer a visão dela de volta! - respondeu.


* * *

Ele esvaziou uma pequena garrafa de licor na sala do velho companheiro Kent. "Não exagere, chefe" pediu o homem, mas Alfred simplesmente ignorou seu pedido. Tomou o carro e saiu do estacionamento, às pressas. Seus olhos enxergavam rotações a frente e o cano da arma apertava em sua coxa quando sentou.

Buster... você é uma Buster e não pode cair em um poço tão fundo, Emily...

A estrada a frente estava em zigue-zague. Alfred avançou, controlando de qualquer maneira o volante nas mãos.

Eu não sou um tolo! Não sou... desgraçados! Acham mesmo que tomará o meu império, Field? Não deixarei... não posso! Não posso! EU SOU ALFRED BUSTER, PORRA!

De repente sua visão entrou em foco. O licor não tinha feito tanto efeito agora. A toda hora que acelerava, sentia o cano da arma roçar-lhe a perna e a mão tremer sobre o volante. Ele sabia que tudo ia acabar, em pouco tempo, tudo ia acabar...


O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora