53.Norman

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"Volta-te para mim e tem misericórdia de mim, pois estou só e aflito." (Salmos 25:16)

Norman se sentiu inquieto o dia todo.

Foi bastante ruim acordar com aquela sensação, ter algo agudo cutucando-lhe o peito não era nada agradável. Olhou a bela casa de Carlton e se imaginou nos próximos anos morando ali. A realidade era encantadora e indispensável, ele sabia disso.

O corpo ainda estava esfriando nos fundos e Norman não se encorajou a ir até lá. Tinha envolvido-o num manto de seda, arrancado a cortina de um dos quartos de baixo para enrolar e um saco plástico de lixo para dar o acabamento. Do jeito que deixara o corpo permanecia.

Droga, tenho que enterrar.

Antes quando tirava a vida de seus inimigos quem enterrava era na maioria das vezes Big Roy.

Big Roy, o traidor, pensou. Big Roy, o assassinado. Então riu.

Agora ele tinha que fazer o serviço. Tomar coragem era fácil, difícil era ter que lidar com a complexidade de sua mente para fazer isso. Ele enterraria quinhentos cadáveres se possível, e teria a noção de que eram quinhentas pessoas ali. Isso o bloqueava, ríspida e drasticamente.


* * *

Ele jogou a última par de terra quando a noite chegou. O corpo de Carlton Fedrich jazia nos fundos, num lugar onde bétulas cresciam em companhia de algumas ervas mal podadas. No dia seguinte procuraria Alfred Buster, o "velho pai", para tratar do restante do plano de convencer aos policiais que Carlton tinha sido morto misteriosamente. Era um álibi cuidadosamente perigoso.

Norman retornou para o interior da casa e guardou a pá no quarto de ferramentas de jardinagem. Fez a própria comida. Cozinhou alguns legumes e fritou um pedaço de bife que comprara na tarde. O cheiro estava delicioso, subindo no ar e preenchendo toda o ambiente da cozinha. Levou um pouco do molho da carne para a boca, provou e achou que estava bom o suficiente para ter um jantar magnífico. Deixou os legumes descansarem, a panela com o bife dourar no fogo, tirou o pano dos ombros, pôs de lado sobre a pia e subiu para vestir uma roupa que lhe desse um ar nobre para a ocasião.

Afrouxou um pouco o nó da gravata, arrumou o terno e a frente do espelho se viu como nunca antes.

- Deem as boas vindas ao novo dono e diretor geral da TOMORROW'S COLOR! Papai me deixou no comando... - Norman riu para a própria imagem refletida a sua frente, arrumando os cabelos com um toque dos dedos.

Ouviu um ruído vindo lá de baixo e deu alguns passos em direção ao corredor. Uma sirene. Não era ambulância ou viatura... então ele percebeu que era o alarme de incêndio. Correu para a escada e uma neblina de fumaça cobria desde a sala até a cozinha, sustentada no ar num vapor branco pálido. Atravessou a nuvem para chegar à cozinha. Em determinado momento não enxergava coisa alguma. Mesa, pia ou fogão. Todos tinham sumido por trás do branco. Sentiu cócegas na garganta e o ar preso nos pulmões. Tossiu. Os olhos ardiam e ele precisou levar a mão até eles. Lacrimejaram e arderam ainda mais. Então em meio a fumaça intensa, enquanto o alarme gritava numa luz vermelha no alto, Norman viu uma fagulha surgir entre o branco vaporizado. Alaranjada e intensa. Ele sabia que era do fogo onde o bife estava.

Tentou alcançar a pia, conseguir um pouco de água e apagar o fogo. O alarme continuava a gritar e gritar, mas não acionava o dispositivo de água acima da cabeça de Norman. Então o alarme parou. Não tinha funcionado o dispositivo.

Em determinado momento ele já tossia horrores, sentindo a garganta inflamar. Os olhos ardiam como nunca. Não tinha mais o que fazer. A fagulha aumentara significativamente, tomando o espaço entre o fogão e a mesa. Norman correu para a porta. Não lembrou que havia trancado. Ela não abria. Buscou as chaves nos bolsos, em vão. Nada encontraria naquela neblina que tomava agora toda a casa.

De repente tentou abrir a porta na base da força. Segurou a maçaneta e puxou com toda a força. Nada. A porta nem sequer envergava. Bateu diversas vezes e parecia não fazer efeito. A madeira não rangia ou qualquer lasca se soltava. Estava intacta. As chamas começaram a invadir a sala de jantar e provocar calor na sala de estar. Norman correu para o andar de cima quando viu uma sombra no alto da escada. A figura era monstruosa, quase cadavérica. Tinha o olhar negro sobre ele.

- Aonde pensa que está indo, Norman? - perguntou a figura sombria.

Ele estancou no degrau. Henry Jasper tinha sido sua primeira vítima desde que entrara para a gangue. Fora seu primeiro inimigo, o qual havia assassinado com um forte golpe na cabeça com um taco de beisebol. Agora ele estava ali, a sua frente. Norman desceu rapidamente, o coração saltitante. Assustou-se com outra sombra mais a frente, ao lado do sofá. Essa era pálida e estava de costas. Na nunca uma marca negra e um traço marcado na pele cinzenta. Sangue. A figura virou:

- Vamos nos divertir, Norman. - disse Andy, os olhos puxados como cicatrizes, a boca retorcida e branca.

- O que você são? - gritou Norman, ao cair no chão. - O que vocês querem, desgraçados?!

Henry descia as escadas em meio a fumaça, Andy se aproximava devagar, passo a passo de Norman estendido. Ele usou os cotovelos para se afastar até o corredor. Outra voz, e ele notou que estava aos pés de outro deles. Encarou de baixo para cima uma pança e um olhar reprovador:

- Deixe-os em paz, deixe-os em paz! Ninguém incomoda meus hóspedes! - era o dono do hotel que ele assassinara quando resolveu buscar Emily. Era o mais assustador até então...

Norman se ergueu depressa, apavorado. O fogo serpeava pelas paredes, tomando cortinas e móveis. As chamas agora estavam gigantes. Aproveitou que a figura de Henry tinha descido e subiu as escadas com vigor, passando pelo corredor e indo em direção ao quarto. À porta do cômodo outro deles. Estava de frente para a porta, socando lentamente. "Pá, pum, pá, pum". E Norman pôde ouvir o sussurro fantasmagórico de sua voz: "Abra isso! Abra isso!"

Quando Carlton Fedrich virou-se, Norman pôde ver seus olhos esbranquiçados e sua pele pálida como vela. Da boca surgia sangue que seguia até o queixo. "Abra isso...". Como se ele pedisse para abrir o saco onde estava enterrado. Em determinado momento Norman se viu perseguido por dezenas deles, gritos ecoavam no seu ouvido.

- Venha conosco Norman... - todos diziam, num tom manso.

Ele correu pelo corredor mais uma vez e caiu lá embaixo. Uma dor excruciante tomou seu corpo, mas ele conseguiu se levantar. Suas pernas estavam em chamas. Ele sacudiu e tentou se libertar das labaredas. Correu em desespero novamente até a porta.

- Venha conosco Norman...

- Nós não descansamos do outro lado...

- Por sua causa...

- Fez isso com todos nós... todos nós...

Em determinado momento viu em meio as chamas que agora lambiam maior parte da casa os rostos de Big Roy e Franklin gritando. Os rostos iam e voltavam. Mãos enormes sacudiam em meio ao fogo. O calor intenso. Suas forças se reduziram.

Eles estão chegando... de novo... Meu Deus... ajude-me! Me ajude!

- Deus não o ajudará, Norman... - a voz de Andy era arrepiante, ela vinha pela direita.

- Seus amigos o levarão... - disse Henry.

Norman gritou, lágrimas desciam por seu rosto. O fogo gigante estava a sua frente e já tinha tomado conta de tudo.

- Por favor, não... por favor...

Ele sentiu-se puxado. Roliço de um lado, Henry de outro... Andy e Carlton logo atrás.

- NÃO! POR FAVOR! POR FAVOR, NÃÃO! EU IMPLORO! EU IMPLORO! NÃÃÃO! - Norman se debatia conforme se aproximava das chamas, sendo puxado por Roliço e Henry.

- Venha Norman... venha... - Big Roy o chamava, o rosto esculpido na labareda.

Ele foi engolido pelas chamas antes mesmo de implorar mais uma vez. Mãos o puxavam, diversas dela... dor... dor... tudo que sentia...

As mãos demoníacas o arrastaram mais e mais...

Então ele foi embora.

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