51.Norman

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Lá fora era não mais que uma simples rede de neblina. Fina. Que se arrastava como um grande fantasma de lesma pelas casas do bairro. O tempo tinha se fechado há horas e tudo que Norman Buster pôde pensar foi em um certo sonho que tivera naquela manhã.

Ele tinha subido novamente a árvore que havia no jardim. Sua mãe tagarelava sempre que ele estava no topo, entre os galhos mais retorcidos, esticando os braços para tomar uma maçã e comer ali mesmo. A árvore já não estava mais ali há anos. A própria Ivy Buster ordenara que o jardineiro a arrancasse dali a machadadas. Norman não viu sua morte, tampouco imaginou como teria sido seu sofrimento, mas ali estavam as marcas de que ela realmente fora tirada dali. A parede do muro atrás do tronco agora era visível, o que tornava a situação estranha para ele. Apenas um toco fincado na grama tinha sobrado. O sonho tinha resgatado a lembrança de forma arrasadora e agora ele novamente podia estar entre os galhos, lá em cima, sem os gritos de Ivy Buster ecoando lá embaixo em desespero.


* * *

Naquele dia tinha ido ao escritório do pai para contar sobre o ocorrido. Não do "novo" pai, e sim do "velho" pai. Não Carlton Fedrich, e sim Alfred Buster. Tinha ido ao seu encontro na empresa de vidrarias. Não contara nada a Carlton por medo de represália.

- Parece que ela voltou... - disse Alfred Buster para Norman quando ele falou sobre Emily ter fugido quando tentou levá-la do hotel. - E sugiro que não faça nada até segundas ordens, filho. Preciso que ela não meta os pés pelas mãos e saiba que estou de alguma forma ajudando-o. Daremos um tempo a ela. Mas agora... conte-me sobre o novo "papai".

Alfred riu, sentando-se na cadeira presidencial do escritório. Norman seguiu os risos de forma satisfatória.

- Ele me acolheu em sua casa. Está comprando todos os medicamentos dos quais necessito. Carlton está sendo um bom "papai". - a ironia nítida em sua voz.

- Desculpe não tê-lo visitado durante o tempo que você ficou no hospital. Realmente não poderia colocar nosso plano no fundo do poço. Se Ivy soubesse sobre o que tinha acontecido, com certeza iria até lá e poria tudo a perder quando encontrasse o tal Carlton Fedrich. - Alfred levava o olhar de um lado a outro da mesa, jogando uma pequena bola de beisebol e jogando-a para Norman, que devolvia em seguida.

- Você acha que pode dar certo?

- Não pode dar errado seria a afirmação correta! - o diretor da empresa de vidrarias parou com a bola na mão e girou-a num dedo. - Quem diria que o ex-detento Carlton Fedrich ergueria um um império de tintas... rico! Milionário! Você ficará com tudo Norman, com tudo, filho...

Norman avaliou um momento a situação que estava se metendo, enquanto Alfred buscava na terceira gaveta um vidrinho de cinco centímetros com um líquido amarelo dentro.

- Aqui! - ele o entregou a Norman, que tomou cuidado para não derrubar. - Tenho informações privilegiadas de que esse é fatal! Despeje tudo, de preferência na bebida! Agirá mais rápido. Faça o que eu disse e ficará tudo a panos limpos! Fedrich tomará e caso algum indício aponte para você eu o defenderei. Desde que saiu do hospital sempre ficou comigo, num apartamento que tenho a sul da cidade. Tudo ficará bem. Será provado sua genética a dele, e como o panaca mora sozinho... ele deixará tudo em suas mãos!

Alfred gargalhou bastante dessa vez. Norman olhou para o vidro e pela primeira vez teve medo de fazer algo.


* * *

- Espero que tenha gostado, filho. - ali estava Carlton Fedrich, novamente levando aquela palavra aos lábios para se dirigir a ele.

Norman engoliu em seco e quis retribuir:

- Estava muito bom, pai. Obrigado. - limpou a boca com o guardanapo e tomou o suco. - Na verdade eu queria mais um pouco...

Norman indicou o copo vazio.

- Oh, tudo bem, sem problemas, filho... só um minuto! - Carlton foi até a cozinha, os passos largos, querendo chegar de imediato, tomando iniciativa para agradar de qualquer forma o filho.

Norman encarou a lagosta, o peixe e o arroz. Na salada havia uma mosca a zumbir de um lado a outro, constante. Do outro lado da mesa o vento se arrastava pela sala de jantar e um calafrio lhe subiu a espinha.

O que está esperando? Faça! Faça agora!

Ele se surpreendeu. Segurou firme o vidrinho com o líquido amarelo nas mãos e encarando o copo de suco de Carlton a sua frente, ainda pela metade.

Vamos, imbecil... faça isso! Imediatamente, antes que ele volte!

Surpreendeu-se mais uma vez. Normalmente aquela voz em sua cabeça seria a dele, instigando-o a continuar, a seguir em frente com seus instintos. Porém era uma outra voz... mais forte e grave. Era o tom de voz de Alfred Buster. Ele estava na cabeça dele, o som ecoando em seus miolos...

Leve essa porcaria para o suco e despeje! Vamos, merda! Agora!

Ele esticou o braço e despejou a substância. Uma mistura homogênea se formou. O suco amarelado sumiu com a cor da substância, que se dissolveu dentro. Carlton Fedrich retornou pouco depois dele ter guardado o vidro vazio no bolso da jaqueta.

- Tudo bem... aqui está! - levou o copo vazio de Norman para a jarra e encheu-o novamente. - Deixarei aqui caso queira mais, filho...

Norman encarou Carlton, calado. Seus olhos iam dele para o copo meio-cheio de suco. A primeira coisa que o homem fez foi levar o copo até a boca e tomar um gole grande do suco. Voltou ao arroz e comeu duas colheradas com o peixe.

- Filho... - falou Carlton. - Aconteceu alguma coisa?

Ele havia notado certo tremor em Norman. Uma paralisia temporária. O suco que ele tinha posto não tinha sido tocado por ele e ele parecia esperar algo fazer efeito. Norman balançou a cabeça, negando.

- Não tenho palavras para dizer o quanto estou feliz com você... - ele piscou uma vez e pareceu ficar vesgo, balançou a cabeça e riu um pouco. - Nossa... eu estou... filho... filho... o que está...

Carlton teve forças de se erguer da cadeira e dar alguns passos, segurando-se na mesa. Bamboleante, saiu aos tropeços e pedindo por ar. A mão ia a garganta, os dedos arranhando o pescoço como se quisessem atravessá-lo. As unhas afundavam na pele e marcas de sangue a tomavam. "Filho" tinha virado um suspiro interrompido e sem voz. Norman tinha se levantado também e olhava para Carlton sem fazer absolutamente nada.

Pé a frente, pé atrás. Tornozelo torcido e joelhos ao chão. Carlton foi ao chão, caindo quase por cima de Norman, que deu um passo atrás.

Ele está... está...

Norman sabia como ele estava. Morto. Morto. Repetiu várias vezes para si mesmo, tentando se convencer do ato. Morto.

Ele encarou os olhos de Carlton bem abertos e uma baba gosmenta saía pela boca, escorrendo pelo chão. Um minuto. Talvez menos. O veneno tinha realmente funcionado. Então parou e pensou em como tinha pensado em voltar atrás, em não fazer aquilo com seu pai. Jogar o veneno na pia, no lixo ou devolver a Alfred.

Olhou em volta. Era uma bela casa. Toda dele, toda só para ele! Arrastou o corpo de Carlton Fedrich para os fundos, subiu para o quarto e dormiu por cinco horas seguidas.

O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora