40.Emily

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Como os seus olhos a encantavam! Ela poderia passar todo o dia os fitando, delicada e trôpega em delírio, era como se dormisse no mar, enquanto ondas gigantes a levam para longe da terra firme com a certeza de que acordaria bem. Tinha passado uma noite maravilhosa ao lado de Jack Field, e mostrava-se muito mais apegada aos sentimentos, o que significava estar mais apegada a liberdade. Nenhum momento se arrependeu de ter fugido dali, da imensa tortura que estava sendo; nenhum momento pusera as mãos na cabeça e se perguntara o porquê de estar fazendo aquilo, se não poderia voltar atrás e não arriscar. Talvez a velha Emily fizesse isso, provavelmente a velha Emily estaria confusa com tudo, a perturbando de maneira grotesca, como um fantasma do ceticismo. A Emily que há algumas horas vira no espelho na parede do quarto estava transformada. Emitia uma confiança em si mesma e não se importava com as consequências.  Seguiria em frente... sempre...

       Desde que tinham chegado em Anchester souberam que tudo seria mais complexo. Nada havia amenizado ou estava tranquilo. Precisavam manter o controle da situação.

- Desculpe pela água fria... - o proprietário do hotel entrou no quarto após Emily autorizá-lo. - Não vai mais acontecer. Os hóspedes sempre têm essas ressalvas quanto a hospitalidade!

- Eu entendo. - compreendeu Emily. - Não tem problema.

O proprietário do Nervana's era um homem chamado Roliço. Emily tinha ouvido pelo menos meia dúzia de pessoas chamá-lo daquela forma desde que chegaram no hotel simples, num bairro de classe baixa de Anchester. O homem tinha excesso de peso, barba enorme e cinzenta, usava um boné vermelho no alto da cabeça e suspensórios bem elásticos. Pelo excesso de peso ele andava mancando. Ela achara que fosse algum defeito na perna, mas compreendeu logo ser a pança saliente de Roliço.

- Oh, quase que esqueço... - Roliço deu meia volta e retornou a falar com Emily. - Um senhor está lá embaixo, senhorita. Diz que a conhece.

Emily não precisou pensar muito para saber quem era. Tinha feito um telefonema uma hora antes.

* * *

- Não poderia ter escolhido um lugar melhor? - reclamou Brandon, notando cada canto do quarto com acúmulos de sujeira. Era um hotel simples, como Emily sabia, então não tinha muita mordomia.

- Este é o último lugar que meus pais entrariam para me procurar. - afirmou Emily, sentando no sofá pouco confortável.

- Mas essa hipótese não está descartada. - disse Brandon, logo concluindo: - Mas posso saber por que estou aqui?

- Bem, simples... - ela se aproximou dele, tocando de leve suas mãos sem luvas. Sua pergunta mudou e ela se dirigiu a Brandon com um olhar pesaroso: - Agora que notei, Brand. Suas luvas... seu terno... meus pais o deram uma folga?

- Infelizmente, não, Emi. - o olhar triste do motorista acusou-o. - Depois daquele dia... aconteceu diversas coisas e Brenda contou para Ivy a minha participação em tudo. Então me despediram.

- Oh, Brand, sinto muito! - Emily emitiu uma voz chorosa, culpada por tudo. - Sinto mesmo! Não se preocupe... você me será muito útil aqui! Tenho uma poupança e acho que a última coisa que eles pensariam seria bloquear minha conta no banco. Preciso que retire uma quantia! Dou-lhe a senha e você faz o resto!

- Tem certeza que isso dará certo? - ele recuou um ou dois passos e achou que já estava envolvido até o pescoço, então não faria mal seguir até o final. - Por que não vai você mesma?

- Não posso ser vista, mesmo em um banco local. Você sabe muito bem do que eles são capazes, principalmente o grandioso e poderoso Alfred Buster! - ela retirou de um bolso um pedaço de papel bem dobrado e entregou nas mãos de Brandon. - Eu sei que você consegue! Se conseguir terá o seu primeiro salário trabalhando para mim! Adiantado!

Brandon fechou a cara e retrucou:

- Saiba você, Emily, que não participo disso por dinheiro! Não ligo que receba algo ou não, porque sei que devo protegê-la de qualquer coisa.

- Tudo bem, tudo bem... mas terá mesmo assim! Está sem trabalho, contanto está sem dinheiro! Como sobreviverá?

Brandon se calou. Ele sabia que Emily tinha razão.

- Tem mais uma coisa, Brand! - ela o impediu que seguisse porta a fora para dizer-lhe algo mais. - Espero que não se incomode!

Brandon concordou.

* * *

Dois dias depois, enquanto desceu para o café no hall do hotel, demasiadamente simples, acompanhada de Jack, Emily viu que alguns hóspedes estavam com os jornais abertos a frente do rosto, estudando as notícias com os olhares límpidos.

- Ainda acho uma péssima ideia o fato de ter pedido algo do tipo a Brandon. - disse Jack, e Emily o observou de soslaio. - Não sabemos se ele cumprirá com as exigências.

- Ele saberá o que fazer. - ela ficara tranquila quanto a isso. - Tenho certeza, Jack. Não se preocupe.

Ela tomou o jornal nas mãos e avaliou o que prendia tanto a atenção das pessoas. Uma das matérias uma fotografia em preto e branco de uma linda garota sorrindo destacava uma das colunas. A jovem tinha olhos puxados. Emily deixou uma lágrima escorregar.

"CORPO ENCONTRADO EM ESNERVILLE"

A jovem de vinte anos, Andy Samantha Creegan, estudante de medicina da universidade de Damphill, foi encontrada por uma moradora da região, com sinais evidentes de assassinato. Um tiro foi localizado na nuca. O corpo foi localizado próximo a um córrego, dentro de um saco plástico enorme. Os pais estão chocados com a notícia, naturalmente. "Ela era uma boa menina" afirmou a mãe. "Não entendo quem faria isso com ela... não entendo!" reiterou o pai. O corpo de bombeiros foi imediatamente acionado para o local e recolheu o corpo para o necrotério. Nenhuma pista foi concretizada até o momento. A polícia local continua investigando o caso. O inquérito tem prazo indeterminado.

Jack encostou a mão na dela suavemente. Ele também tinha um jornal nas mãos, e tinha lido sobre o ocorrido.

- Eu sinto muito. - ele tentou acalmá-la, aproximando-se dela na mesa.

Emily  fechou o jornal e retomou o café. Ficou em silêncio a  maior parte do dia e só pôde sorrir quando o entregador chegou à porta do quarto, acompanhado de Roliço.

- É um belo piano, senhorita! - disse o homem gordo, afagando o suspensório.

O entregador e seu ajudante deixaram o piano na sala, indo embora logo após Emily assinar um documento.

- Realmente, é um lindo piano. - Jack sorriu. - Brandon escolheu bem.

- Por isso quis que ele fizesse isso, com a ajuda de Jeyne, é claro. - ela deu a volta no piano e sentou no banco, apertando cada tecla, ouvindo atenciosamente a melodia.

Parecia tudo diferente agora. O som, a música... tudo. Era agradável.

- Acho que o piano pode esperar... - Jack a ergueu do banco e tomou-a nos braços, embalando-a num beijo que a deslocou de órbita.

Sim... ele podia esperar...

pensou Emily,

Como nós esperamos até agora.

O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora