23.Emily

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Seu quarto tinha sido consumido pelo passado. A escrivaninha com a moldura que desenhava a madeira, a cama acolchoada com penas de pavão e bordada a cetim e linho, o branco das paredes e o verde do chão, a enorme janela com vidraças duplas. Tudo era uma lembrança, tocada pelo passado e saudada pelo presente. Emily ganhara costume pelo ambiente novo que a envolvia.

Uma a duas vezes por semana Brandon batia à porta dos Field. Ele trazia um saco de bolinhos de amora e torta de queijo, sempre enaltecendo que Emily precisava se alimentar. Sempre relatando o que estava ocorrendo: "A sua mãe tem me perguntado a seu respeito. Tudo que sei eu nego. Sei que é para o seu bem, Emily." ; "Eu agradeço Brandon, você está fazendo mais por mim do que eu mereço." dizia Emily, recebendo o que o motorista a levava gentilmente.

"Talvez, Emily, sua mãe a ame. Sabe bem, o amor de mãe que todas têm, mesmo que só uma nesga dele brilhando no peito." Brandon uma vez a dissera, enquanto Emily mordia um dos bolinhos de amora. "O amor não é algo que brilha pouco ou bastante, Brand. Ele brilha ou não brilha. Invade o peito ou não invade. O amor dela por mim é escuro, sombrio, rude... como cinzas. Talvez em meio a essas cinzas exista uma chama querendo sobreviver." Emily deu outra mordida e então Brandon não dissera mais nada.


* * *

Nos seus sonhos mais profundos Emily tinha Jack ao seu lado. Os olhos do jovem eram duas esferas iluminadas pelo sol, rastejando pelo ar num movimento suave em busca dela nas nuvens. "Você é linda!", dizia ele quando Emily despertava pela manhã, seus olhos buscando focalizar seu rosto. Um beijo suave celebrava o começo do dia. Jack ia ao viaduto Grand Mary com os pais e a irmã, enquanto Emily continuava isolada dentro de casa, olhando para o pequeno jardim situado no quintal dos Field, a meio quilômetro da estrada principal, onde os caminhões faziam trajetória em direção à cidades vizinhas, levando cargas e mais cargas de produtos.

Na terça-feira, não muito depois dos Field saírem para o Grand Mary, alguém bateu à porta. Era um dos dias em que Brandon ia visitar Emily, mas estava cedo demais para que ele aparecesse. Emily se esgueirou sobre a mesa do quarto de Jack, passando pelo corredor da sala e abrindo uma brecha na cortina, até que a figura de um homem com traços que ela tinha uma vaga lembrança foi vista. Emily se esforçou para lembrar de onde conhecia o sujeito. Não muito tempo se passou até que ela reconhecesse o homem que há algumas semanas tinha ajudado Clarice a retornar para casa. Após o choque do término de namoro e fim de noivado o sujeito fizera questão de levá-la para casa e ela o agradeceu muito pelo favor.

Emily sabia que ele tinha frequentado por duas a três vezes os arredores da casa dos Field. O homem conversava com Clarice e o afeto que um tinha pelo outro era de pai e filha. Emily uma vez escutara as palavras saindo da boca do senhor Field: "Espero que não me troque por ele, querida. Ele parece bem mais agradável de lidar do que eu.", Clarice então sorriu e abraçou o pai com afeto. "Eu sou muito agradecida a Carlton pelo que ele me fez. Mas nunca faria isso.";

Carlton. O nome do homem solidário era esse. E agora Emily se recordava.

Então se dirigiu à porta e girou a maçaneta. O homem à soleira dela era educado, tinha certo ar europeu, quase um conde que os pais costumavam frequentar a casa, pensava Emily. Os cabelos loiros como os dela e os olhos verdes, uma figura imponente.

- Oh, olá, Clarice, por favor? - suas palavras eram rudemente respeitosas. Era como se ele tivesse há um tempo se despedido do seu "antigo eu" de personalidade forte para um "novo eu" de comportamento respeitoso e solidário. Emily via em seus olhos uma certa mágoa, cravada pela vida que talvez ele tenha tido, quase visceral. Era como se algo de ruim lhe tivesse acontecido, mas que ele tentava deixar para trás com um sorriso ardente.

- Desculpe, ela não está... Carlton, certo? - Emily segurava a porta, ainda insegura. - Você a encontrará no Grand Mary.

- O viaduto? - ela estranhava que o sujeito não soubesse onde Clarice trabalhava. Talvez ela não o tivesse dito, ou provavelmente ele tivesse esquecido. Afinal, eram poucas as vezes que Emily realmente havia visto Clarice na presença dele.

- Sim. - respondeu Emily.

Carlton olhou de um lado para outro na varanda, parecendo um pouco atordoado. Os seus olhos foram levados novamente para Emily:

- Você... me lembra alguém. - ele avaliava os traços dela minuciosamente, estreitando o olhar para focar nos detalhes do rosto e cabelo. - Alguém que conheci há muito tempo.

- Me sinto lisonjeada, caso essa pessoa tenha trazido felicidade ao senhor. - ela observou-o. Carlton desviou o olhar por um segundo, retornando-o para ela no momento seguinte:

- Oh, sim. Felicidade. Mas... os nossos desejos sempre acabam destruídos por nós mesmos, se você me entende? - seu passado pareceu retornar e Emily teve ainda mais certeza de que seu pensamento a respeito de Carlton era verídico.

- Talvez eu o compreenda, sim. - um sorriso tomou seus lábios. - Se não lhe parecer muito invasivo, posso saber se o que você sentia por essa pessoa era um sentimento que...

- Amor. - ele a interrompeu, insistindo em percorrer os traços de Emily com o olhar observador de alguém que examina a cena de um crime. - O que senti foi o mais puro amor que um homem pode sentir por uma mulher. E... mesmo depois de tanto tempo não a esqueci. Mesmo após a tragédia.

Emily ficara intrigada com o termo que usara. "A tragédia". Carlton não precisara entrar, Emily se encontrava na varanda após se interessar pelas palavras dele.

- Tragédia? - perguntou, tomando curiosidade sobre o assunto.

- Exato. Uma tragédia na família dela que por fim acabei culpado por tudo. Eu sempre fui inocente, mas minhas palavras de nada adiantaram para a justiça, ou para seus bolsos, se é que me entende!
Não duvido nada que a mãe tenha subornado policiais e o juiz para que eu pudesse ir àquele lugar...

- Desculpe a intromissão, mas o que exatamente aconteceu para que o senhor fosse preso? - ela viu que ele se sentia à vontade em falar sobre o assunto. À vontade como um desabafo, mas ao mesmo tempo um martírio, como se ainda carregasse um fardo.

- Houve um assassinato. O pai, que por sinal não tinha muito apreço por mim, foi encontrado no carro, numa estrada, assassinado a tiros. Não encontraram sinais, marcas, digitais... nada que pudesse incriminar e achar o suspeito! Então começaram a aparecer dedos que me apontaram. Não sei exatamente quando vieram, de onde vieram ou de quem vieram, mas sei que quando dei por mim já estava sendo levado por policiais, jogado em uma viatura e encaminhado para a delegacia. Cumpri quinze anos. Nunca a procurei novamente. Tudo que aprendi dentro daquele lugar me fez compreender que a vida não tinha sentido. Nadamos dos tubarões e morremos sem ar na praia. Mas ainda lembro de cada detalhe da nossa relação, cada minuto que passamos juntos como se houvéssemos feito ontem. E olhando para você... lembrei-me de quando éramos jovens.

- Eu sinto muito por isso. E agradeço por fazê-lo lembrar de alguma coisa boa, embora tudo esteja em meio a uma tragédia. - Emily o entendia perfeitamente. A sua relação com Jack também não era a mais aceita por sua família, e nessa parte ela compreendia Carlton.

- Então... quanto a Clarice... - ele mudou de assunto rapidamente, sentindo algum impacto emocional. - Talvez outro dia...

- Sim. Eu a deixo esclarecida sobre a sua vinda. - se comprometeu Emily.

O homem se retirou, mas antes de deixar a varanda ainda tentou uma aproximação mais forte com Emily:

- Talvez você possa me dizer como se chama. - seu sorriso transparecia. - Se não se incomodar.

- Oh, claro que não... - Emily abriu mais um pouco a porta e um vento soprou o loiro-dourado de seus cabelos. - Emily Buster. Foi um prazer conhecê-lo.

Ela viu a expressão de Carlton mudar. Seu sorriso deu lugar a um semblante boquiaberto, pensativo e pasmo. Ele a deixou fechar a porta. Emily viu que Carlton caminhava pelo terreno, parecia perdido. Havia alguma coisa que ela falara que o tinha deixado daquela forma.


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