"Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem levá-lo na correnteza. Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado." (Cânticos 8:7)
A sensação de Emily era de estar em uma onda, sendo carregada por mar aberto. A espuma lhe lavava os cabelos, embaralhando seus pensamentos, assim como a sua alma.
Tudo havia desabado. Uma sequência de acontecimentos trágicos a cercaram de maneira que ficasse obsoleta a qualquer coisa, sem capacidade para enfrentar a dura realidade. Dois meses, dois severos meses, tinham se arrastado pelos confins de sua vida. Dois meses como duas serpentes de dor, que ultrapassavam os laços do amor para impor um pouco de lástima, como dois raios que ultrapassavam qualquer bem para impor o mal; como duas sombras bestiais que se espreitaram por entre um caminho de luz e acabaram com tudo. Eram dois meses, e ela não poderia dizer que houve apenas um dia que pudesse dar um sorriso de verdade, um sorriso como os que dava quando tinha ele ao seu lado, um sorriso que transcendia a beleza do amor que aflorava em seu peito.
Um toque no ventre, os dedos passearam pela barriga saliente. Já tinha crescido o suficiente para dizer que tinha algo ali dentro, algo renovador, o amor em sua forma mais perfeitamente humana.
* * *
- Deus... como me arrependo. - a pessoa que Emily via ali a sua frente não era a mesma que conhecia.
Ivy Buster era outra mulher. Por mais difícil que fosse acreditar, Emily conheceu a mãe por tempo demais para dizer que a mudança a tinha atingido fortemente, transformando-a num ser que quem conhecia nunca decorreria de pouco tempo para lidar. Ivy Buster tinha os cabelos presos num coque no alto da cabeça e as roupas negras simbolizavam sua eterna vida de luto.
- Me perdoe, Emily. Deus, como sinto vergonha... - lágrimas lhe desciam pelo rosto, quentes e dolorosas. - Eu só tenho você, minha filha... eu não posso perdê-la! Deus, como eu queria que tudo fosse diferente, como eu queria que essa dor acabasse... como queria!
Emily deu as mãos a mãe e segurou as dela num aperto reconfortante. Tinham perdido Alfred Buster numa tragédia no viaduto Grand Mary; Emily soube no dia seguinte a morte do pai que um incêndio na casa de Carlton Fedrich tirara a vida de Norman. O corpo foi encontrado totalmente irreconhecível, não fosse por digitais... então após perícia por toda a casa foi achado o corpo de Carlton nos fundos da casa, enterrado com sinais de envenenamento. Ela sabia a verdade, no fundo ela sabia que Norman seria capaz de tal monstruosidade. Emily não sabia medir o quão difícil foi aceitar tanta dor de uma vez, tanta desgraça consecutivamente distribuída em cada canto de sua vida.
- Se eu pudesse voltar atrás, faria tudo diferente... perdi pessoas importantes para mim. Meu marido, meu filho... - Ivy estancou quando falaria o nome de Carlton Fedrich.
- Carlton... - Emily dissera por ela. - Eu sei que você tinha apreço por ele, mãe. Sei disso. Sinto muito!
Ivy não economizou em mais lágrimas. Emily não soube medir o grau de roxidão que seus olhos mantinham ao redor. Estavam inchados demais para medir. O enterro do pai e do irmão tinha sido catastrófico. Ela entendia que por mais que a mãe tivesse os defeitos monstruosos que sempre teve ela se importava com cada um deles, com cada coisa que tinha, e que de certa forma isso sumira. Simplesmente sumira no interior de Ivy Buster.
Essa não é mais minha mãe... reiterou para si mesma Emily.
- Não se preocupe. Eu cuidarei de vocês dois, querida... de vocês dois! - Ivy tocou a barriga da filha e deu um leve beijo. - Oh, eu sinto muito... tudo vai ficar bem! Eu prometo!
Elas se despediram num abraço verdadeiramente amável. Um abraço que há muito não se via em qualquer parte do mundo, o abraço de uma mãe e uma filha, agora unidas pelo amor. Tinham que se unir para juntas afastarem toda cinza que ocupava o espaço da dor.
* * *
- Bom dia, meu amor. - o som de sua voz preencheu o ambiente amistosamente. Ela sabia que de alguma forma ele a ouvia, ali mesmo, onde estava. - Espero que esteja bem hoje. Trouxe algo para que veja.
Jack Field tinha sido o homem que ela mais amou na vida. Tudo que precisava saber era que o continuaria amando, continuaria lutando e fazendo por merecer cada minuto que era feliz ao seu lado. Não era fácil vê-lo ali, de olhos fechados, imóvel em uma cama. Emily sentia saudade de sua voz, de como ele a olhava e falava determinadas coisas... de toda a vivacidade da juventude que só ele tinha. A culpa daquilo tudo tinha sido de seu próprio pai e ela esperou de todo o coração que ele realmente pagasse pelo que fez, onde que ele estivesse. Porém reconheceu a força de Jack em estar resistindo bravamente, agarrando-se à vida por ela e pelo filho que teriam. O coma era apenas uma fase que não demoraria muito para que ele se desvirtuasse, deixasse de lado e retornasse a abrir aqueles olhos e a olhar da mesma forma que antes.
- Então, gostou? É lindo, não é? - Emily tinha tirado da bolsa um casaquinho azul de trinta centímetros e posto ao lado da cama de Jack. - Acha que o nosso filho vai gostar? Bem, eu acho que sim... ele vai adorar.
Por diversas vezes tinha um aperto no peito. Apesar de ter uma esperança embutida em sua alma, ela sabia que desistir era um monstro maligno que combatia todos os dias e enviava para longe.
- Espero que acorde logo, meu amor. Escolheremos o nome juntos, quero que saibamos juntos se será menino ou menina... acorde logo, meu amor. - ela tocou em suas mãos e pareciam da mesma forma quando as tocava todos os dias.
Antes de ir ela o olhou mais uma vez, o beijando no rosto. Ela sabia que poderia ser um beijo que provocasse uma reação nele, como também sabia que poderia ser o último.
* * *
- Adivinhe, meu bem! - ela entrou mais uma vez no quarto, três meses depois. - É um menino! Ouviu? Oh, estou tão feliz, meu amor... um menino!
Ela estava sentada ao lado da cama agora, passando a mão por seus cabelos. Como ela queria que ele despertasse... oh, como queria!
Já se passara mais de cinco meses da tragédia e nada tinha acontecido. Surpreendentemente Ivy Buster a estava ajudando muito a superar aquilo, assim como Mandy, Michael e Clarice. Emily sabia que mais do que ela, eles também sofriam. Todos os dias visitavam Jack, por volta de cinco vezes ao dia. Emily tocou na barriga e já estava bem maior.
- Você gostou? - Emily o perguntou, segurando sua mão, buscando qualquer reação. - Um menino...
Nenhuma. Nenhuma.
* * *
Quando Benjamin nasceu, Emily o levou para que Jack o sentisse. O garotinho de poucos fios loiros e os olhos do pai, tocou-lhe. A mãozinha do pequeno Benjamin afagou o rosto de Jack, que estava um pouco fino em decorrência da magreza.
Isso perdurou por muito tempo. As visitas de Emily e Benjamin a Jack ficaram cada vez mais rotineiras. O aniversário de um ano do filho tinha sido dentro do quarto de Jack, assim como os primeiros passos de Benjamin e as primeiras palavras.
Conforme o pequeno Benjamin crescia, Emily via um amor que florescia entre dois seres: pai e filho. E era lindo.
* * *
Os anos tinham se passado assustadoramente. Emily nunca se cansou de ver todos os dias e quando pudesse o rosto de Jack, mesmo naquelas circunstâncias.
- Bom dia, papai. - Benjamin entrou pela porta do quarto do hospital e beijou Jack no rosto, acariciando-lhe os cabelos. - Mamãe achava que seria melhor eu não vir hoje, mas eu não gosto de ficar um dia sem vê-lo.
- Não exagere, Ben... - disse Emily, rindo da situação. - Viu, só, Jack?
Da mesma forma que a mãe tocava a mão dele, Benjamin fazia o mesmo. Aprendeu que isso pode gerar alguma reação. Ele já tinha doze anos e se passara quase treze desde a tragédia. Emily nunca contara ao filho o que realmente havia acontecido. Não queria mexer em feridas do passado.
Emily sentou-se na poltrona do quarto e viu Benjamin abrir uma revista em quadrinhos, levar até a frente do pai e começar a ler. Emily nunca vira uma reação de Jack e achou que aquilo duraria para sempre.
Um dos médicos a sugeriu eutanásia tantas vezes que ela quase se convenceu de seguir por esse caminho. Mas não aderiu. Persistiria. Se fosse o caso de Jack partir... somente ele saberia a hora...
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...