6.Emily

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Emily cruzou os braços num gesto de sobressalto quando Jack aceitou seu convite. O nome dele era esse e isso ele a disse na hora que aceitou que fossem ao DUNIGAN. "Aliás, meu nome é Jack." disse ele, ainda com os cabelos pintados de cinza.


O restaurante de Simon Mobron era um local atrativo e requisitado por milhares de pessoas. Simon era um excelente chef e conseguia pôr nos pratos o que achava necessário para conquistar o cliente. Isso foi o suficiente para agradar o paladar dos Buster por muitos anos. Simon conhecia Ivy e Alfred Buster há mais de vinte anos e Emily depois disso. Simon nutria um carinho especial por Emily. Já em relação a Norman, que nunca sequer pisou por vontade própria no restaurante a não ser quando mal andava, Simon tinha certo receio. O garoto era mal encarado e andava apenas na companhia de arruaceiros em carros luxuosos que não faziam nada além de bagunçar a cidade.

Emily chegou no local acompanhada de Jack. Ele estava elegante, bem apresentável e Emily soube admirá-lo por isso. Em um painel feito de madeira e luz retorcidas em néon, os dizeres escritos representavam que ali ficava o melhor restaurante da região: "DUNIGAN".

- É um lugar sensacional. - as palavras de Jack traduziam o sentimento que Emily teve pela primeira vez quando viu o lugar.

- Isso porque você não conferiu o interior. Venha...

Emily o levou até a entrada, onde dois totens de madeira esculpida a mão estavam representando deuses hindus. O da direita tinha quase um metro e meio de altura e possuía nas mãos lanças. O outro, vinte centímetros mais alto do que o primeiro, tinha nas mãos uma bacia com sementes. Jack entrou, pisando em um tapete moderno que se estendia até o final do salão de mesas.

- Eu avisei. - disse Emily, vendo que Jack se mantinha boquiaberto. - Espere para conhecer Simon. Ele é muito especial.

Eles se sentaram na mesa de número sete e Emily achou Jack deveras preocupado. Quis perguntá-lo sobre o que o incomodava, mas temeu ser evasiva demais. Ela pensou na possibilidade de não estar ali, naquele momento. Talvez se tivesse escutado a mãe, estaria provavelmente dentro de um quarto se culpando por ter uma vida de subordinação. Mas agora tudo dependia de seus instintos. E ela estava adorando essa experiência de ter Jack como mais novo amigo. Ela realmente tinha adorado conhecê-lo.

       Simon Botron apareceu alguns minutos depois. Emily notou que Jack encarou o chef com algo maior no brilho dos olhos. O modo como ele o notou, ela sentiu que ele havia sentido a mesma coisa que ela quando conheceu Simon. O chef vinha pela direita, segurando o braço de um homem alto de nome Gale. Era seu neto, cozinheiro do restaurante há doze anos. Emily levantou-se e beijou as mãos de Simon.

- Oh, Emily, querida... você precisava sentir a saudade que eu estava de você! Sinto sua falta já que seus pais nunca mais puseram os pés aqui... - Simon tinha oitenta anos, os cabelos grisalhos e pele enrugada. 

- Oh, Simon... eu sempre venho quando posso. Já meus pais... eu não me responsabilizo pelo que aqueles fazem da vida! - ela riu e Simon riu junto.

- Entendo, querida, entendo. - o chef parou um instante e sorriu. Pareceu sentir a presença de mais alguém além de seu neto e Emily. - Você tem companhia, Emily? Gostaria de conhecê-lo...

Ela corou. Ela nunca se sentiu tão envergonhada. Suas bochechas queimavam e ela olhou para Jack como se tivesse que apresentá-lo como algo mais sério.

- Simon... este é Jack Field. - o homem esticou a mão e o jovem apertou-a. - Jack... este é Simon, meu chef favorito!

Jack começava a entender a atenção especial que Emily tinha por Simon, assim como seu neto Gale. O senhor além de um chef renomado era deficiente visual. 


Depois que Simon regressou à cozinha segurando no ombro de seu neto Gale, Emily sorriu para Jack, que parecia surpreso demais para retornar um olhar a ela e dizer alguma coisa. Após isso eles beberam, comeram a boa salada de legumes com pêssego e Emily aproveitou o tempo para tratar de explicar algumas coisas sobre Simon a Jack:

- Ele nasceu assim e seus pais o abandonaram a frente de uma padaria, durante uma noite que chovia muito. Simon cresceu em uma casa que tinha uma mãe acolhedora com três filhos, e o padeiro, marido dessa mulher abominava totalmente o fato de que a mulher cuidaria de um bebê quando não tinham dinheiro nem para os que três que tinham. O padeiro foi aceitando com o tempo e logo percebeu que o bebê que a mulher estava criando era cego. O homem novamente tentou convencer a mulher a não criar a criança, deixando claro que isso estaria além de seu limite financeiro. Quem bancaria os custos com um deficiente visual? Então o padeiro, numa noite em que todos dormiam, inclusive a mulher que aconchegava a criança ao seu lado na cama, fez algo que passava de um pecado mortal. Com uma panela de água fervente o homem se dirigiu ao quarto da mulher e tentou virar por cima da criança, mas ele não contava que ela estivesse desperta e viu quando ele virou a panela contra o bebê. A mulher passou o garotinho por cima, enquanto ele tombava do outro lado da cama e caía no chão, chorando horrores, ela sentia a pele pinicar, esquentar e rasgar com a água quente no corpo. Mesmo depois do ocorrido ela tentou impedir que o marido fizesse algo de ruim a criança. Tomou o bebê nas mãos e correu para fora. O garotinho cego chorava bastante e a mulher teve oitenta e cinco por cento do corpo queimado. Ela saiu para a rua e toda a vizinhança a acolheu e a ajudou. O padeiro fugiu dali. Foi pego dois dias depois e preso. A mulher sobreviveu. - Emily parou um segundo, observando Jack olhá-la atentamente. - Simon ouviu essa história quando ela  mesma a contou, alguns dias antes de sua morte. Simon tinha quinze anos quando isso ocorreu. Ele memorizou todos os bolos, massas e outras refeições quando a mulher, Ellen Dunigan, o ensinou. Mas de tudo o que me marca é algo que Simon disse...

Jack esperou não muito para saber o que era.

- "Eu sentia suas queimaduras quando as tocava. Eu sentia que aquilo, de alguma forma, fazia parte não só dela, mas de mim também. Eu nunca soube como ela era fisicamente antes de tudo aquilo. O que meus olhos não enxergavam meu coração o fazia. Isso bastava."

Emily lembrava muito bem das palavras. E Jack emitia o mesmo brilho nos olhos que ela emitiu quando ouviu Simon dizer aquilo. Era, além de tudo, a beleza da vida criando o amor.

O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora