24.Jack

9 2 1
                                    


Enquanto via uma senhora de chapéu amarelo florido cruzar o viaduto acompanhada do que parecia seu netinho, com idade entre sete e nove anos, Jack se tomou lembrando de Emily. Como era prazeroso tomar seu rosto todos os dias na mente, enquanto sorria para cada uma das pessoas que lhe apreciavam no Grand Mary.

Jack recebeu algumas moedas de uma mulher com o filho no colo, usava um vestido comprido de malha e uma echarpe sobre os ombros. Estava fria aquela manhã, e a criança precisava de um boné no alto da cabeça. Em seguida um senhor apoiado a uma bengala, curvado e com bigodes brancos bastante espessos, os óculos minúsculos no nariz, deixou-o uma cédula. O valor era alto e Jack pôde sorri, quase se desviando da atuação de uma estátua. "Oh, meu jovem, você é um exímio artista. Sim, excelente! Muito bom! Minha apreciação é em parte por desejar ter um neto como você! Eu fui artista de rua na minha juventude sabe... saxofonista! Sei que não é fácil! Boa sorte, meu jovem!" disse o velho homem, encurvando o bigodinho com um sorriso por trás. Então veio uma garota acompanhada do namorado. Os dois beijaram-se a frente de Jack, então ele, cedendo à paixão do casal, retirou uma rosa da manga e entregou-a. O rapaz, agradecido pelo presente, retirou uma nota do bolso, não mais alta que a do senhor que saíra dali minutos antes, e pôs no chapéu.

Pouco a pouco o chapéu chegou à metade e Jack nunca conseguira tal feito. Conseguira quase o triplo do que ganharia num dia comum. Seu sorriso. Talvez fosse? Talvez sua alegria transbordasse além daquela roupa e pele cinza... os olhos talvez? Um empresário, um pai acompanhado da mulher e dos três filhos, uma senhora de aspecto jovial com um guarda-chuva, um estudante, uma confeiteira com o avental sujo de farinha. Cada um deles retirou uma cédula de alguma parte das vestimentas e depositou no chapéu. Até chegar um momento em que Jack encarou o chapéu e as moedas estavam escondidas por baixo de uma camada de cédulas. De maior e de menor valor. Talvez por isso recebia cada vez menos moedas e cada vez mais cédulas. Os transeuntes observavam as economias e sabiam o que fazer. Moedas era a última coisa que lhes passava pela cabeça.

Faltava pouco mais de meia hora para Jack encerrar o trabalho, descer da plataforma, montar o espelho na base e se descaracterizar. Agora parecia que não tinha mais quem quisesse colaborar com alguma quantia. Desceu, guardou todo o dinheiro, vendo as cédulas, uma a uma, preencherem a maleta, retirou a garrafa de água do interior dela, arrancando a rosca e umedecendo um pano que levou consigo até sentar-se na cadeira diante do espelho. Levou o pano úmido ao rosto e começou a limpar cada centímetro de pele cinza que encontrava, passando em seguida para o pescoço e braços. Retirou o terno, gravata, colete... toda a roupa foi posta na maleta, junto ao dinheiro. Veementemente ele recolheu todos objetos, a plataforma e o suporte do espelho foram carregados na outra mão. Jack recebera visitas ilustres naquele dia, mas não estava preparado para uma que chegaria fora de hora:

- Não achei que fosse vê-lo novamente, Jack. - Norman Buster era incrivelmente natural quanto a desdenhas, e não media palavras e ações para fazer o que tinha em mente. - Mas parece que você não se contenta em estar fora do meu caminho. O que devo fazer com você agora?

Jack agarrou a maleta e encarou Norman com dois comparsas o olharem de forma tenebrosa. A irmã e os pais ainda estavam de frente aos espelhos, retirando a maquiagem do trabalho, então não perceberam que pudesse haver algo de errado.

- Não sei do que vocês estão falando. - se defendeu Jack. No fundo ele sabia muito bem do que se tratava.

Com um movimento de cabeça Norman anunciou que os comparsas recolhessem a maleta e os suportes de trabalho das mãos de Jack. Não eram Big Roy nem Franklin. Eram outros dois que Jack lembrava-se bem de ter visto na estrada no dia do acidente, descendo das caminhonetes.

- Me devolva isso! Agora! - Jack deu dois passos a frente, antes de ser interrompido por Norman. Seus dedos pressionados contra seu peito. - Você não tem o direito de vir aqui e fazer isso! Me devolve isso agora, Norman!

- Não ouse dizer o meu nome sem minha autorização, artista de rua! - desdenhou. - O que quero é bem simples e você tem cinco segundos para me contar! Caso contrário... Bom, então veremos.

Jack engoliu em seco, vendo que eles tinham pressa. Norman então concluiu:

- Estou cansado de ver todos os dias mamãe se culpando pelo desaparecimento de Emily. Papai está uma fera e não consegue dormir à noite, todos aqueles remédios que toma... céus! Sem falar que estou preocupado com minha irmãzinha. Então, vamos finalizar esse jogo Jack! Você só tem uma chance e sabe que vai perder... melhor que me entregue os dados, deixe-me jogar e sair vencendo. Então, onde está Emily?

Tudo que ele tinha a dizer estava cravado em sua língua.

- Eu não sei. - ele não teve medo ou qualquer tipo de pavor. - Talvez se ela tivesse um bom irmão ou pais que se importassem realmente não tinha acontecido isso.

Jack sentiu um leve gosto de sangue na garganta com o soco que Norman o deu na boca do estômago. Ele caiu de joelhos e escutou as palavras do garoto acima dele:

- Eu disse que você tinha uma chance, Jack. Mas pior do que ser um perdedor é perder por burrice!

Jack ergueu o olhar e viu quando um dos comparsas de Norman jogou todos os materiais para fora do viaduto. Ouviu quando tudo caiu por metros e alguns carros passaram por cima. O som de madeira quebrando. O suporte do espelho. Levaram a maleta consigo, entrando num carro a alguns metros dali e partindo. Jack se contorceu, então ouviu as vozes de seus pais bem perto dele.


* * *

- Não acredito que ele fez isso! - Emily estava brava, andava de um lado a outro, respirando fundo.

Jack não teve coragem de dizê-la a verdade, mas Clarice a dissera. Com toda a descrição Emily logo chegou à figura de Norman.

- Talvez eu possa voltar para casa. - seus olhos baixaram para ver se Jack estava bem.

Ele segurava o estômago, ainda dolorido:

- Não, Emily! Não faça isso. - ele tentou se erguer do sofá. - Por favor, não faça. Você não está segura lá, depois de tudo que aconteceu... por favor, fique! Ele não vai mais nos importunar.

- Você não o conhece Jack! Olha o que ele fez a você! O que ele fez com suas economias... vou repor tudo, não precisa se preocupar... - ela segurava seu rosto entre as mãos carinhosamente acariciando seus cabelos negros.

- Não quero que faça isso! Ele já me levou tudo, todas as coisas... não vou recuperar nada do que realmente era parte de mim. - não era a dor no estômago que mais lhe afligia. A dor que corroía seu interior, rasgando cada pedaço de sentimento era bem maior. A dor da perda de um prazer, do que o agradava, de sua identidade artística.

Eles mergulharam num silêncio, Emily o reconfortando num abraço e um beijo de desculpas. Não era um fim crucial, mas um recomeço notoriamente válido.


O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora