46.Jeyne

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Não era a primeira vez que Jeyne sonhava com Danshiva, e estava longe de ser a última. O seu peso deslocado no estofado e o acesso de espirros se provaram um incômodo fatídico, e ela precisava ter algo para fazer além de ficar sentada ali, olhando ao redor as mesmas caricatas sombras de painéis, luzes monocromáticas e difusas, as mobílias velhas e a tintura descascando nas paredes que a envolviam. Algo que a fizesse sair dali. Algo melhor que os dias que antecederam aquele estágio moribundo que se encontrava.

Seus dedos não esticavam mais como antes. Sua mente era um funil que filtrava pouco a pouco o tonel da exaustão. Não uma peneira, um funil! pensou.

Escutou algo desprazeroso. Cacofonia, ao que parecia. Uma cacofonia intrigante, que sugava-lhe os ossos e tremia em suas carnes. Ela tinha sessenta e cinco anos. Sessenta e cinco! Qualquer tentativa de agradar a si mesma com qualquer som ao piano seria inútil. Tentava convencer a si mesma que não tinha passado seu tempo, que nem bem tinha chegado à metade. Ainda ouviria muito, sentiria muito, até que chegasse aos sons perfeitos ao toque das teclas. Ela sonhava.

Não sou uma professora de piano, sou uma anciã que aprendeu a tocar e quer deixar legado, era o que ela pensava. Por vezes se convencia de que essa era a única verdade mortal que tinha.

Desde que fora ao "Não-casamento" de Emily, Jeyne buscava se aproximar cada vez mais de quem realmente se importava. Uma delas era Lea McMory. A mulher era como uma filha para Jeyne e quanto a isso havia várias razões para que ela pudesse considerar que tinham uma ligação forte. Não tinha se passado mais do que alguns dias quando Jeyne fizera um telefonema para Lea, a ofertando um convite especial.

E, coincidentemente, Lea também queria se ver livre do ambiente nostálgico de casa. Por um tempo.


* * *

Tinham tomado o avião duas semanas antes.

Lea McMory descansava na varanda, observando a lua que tomava o céu estrelado de Andreas. Usava uma suéter com um símbolo egípcio bordado, saias de malha e botas bem comportadas acima do tornozelo. Um copo de vinho nas mãos, levado de minuto em minuto para os lábios, tomado com um delicioso e vibrante ar noturno a rondando.

- Estive aqui apenas uma vez. - disse Jeyne, que acabava de entrar na varanda, alguns papéis nas mãos, tomados de notas importantes. - Eu quase não lembro. Andreas é a cidade que meus avós me trouxeram quando era muito nova. Nunca tive a oportunidade de visitar Portugal aos quatro cantos, mas sei que Andreas é o lugar que eu deveria estar desde o princípio.

- É realmente magnífico, confesso. - confirmou Lea, levantando e indo até a sacada, onde Jeyne se debruçava, com os cotovelos no parapeito. - Eu nunca vim para Portugal, porém sei que virei mais vezes. O céu... tão estrelado, tão belo... e a lua! Deus...

Tomou outro gole de vinho.

- Meus pais nunca me trariam aqui. - disse Jeyne, com um tom inicial de mágoa na voz. - Vovó Kathleen e vovô Hugo eram meus verdadeiros pais. Quatro meses depois de me trazerem a Portugal, quando eu tinha sete a oito anos, vovô Hugo morreu. Os problemas cardíacos estavam causando dor de cabeça em todos da família. Quinze a dezesseis visitas ao médico e o problema persistia. O coração falhava antes mesmo de chegar aos oitenta. Depois que ele se foi, vovó Kathleen se sentiu sozinha. Viajou duas vezes. Uma para a Califórnia e outra para o Brasil. Soubemos através de um telefonema da amiga de quarto do hotel que ela morrera enquanto dormia. Viajamos então para o Brasil para liberarmos o corpo e transladarmos para nossa cidade.

- Oh, sinto muito Jeyne... - Lea tinha deixado de lado a taça de vinho e olhava para Jeyne com pesar, tentando fazê-la esquecer a dor de anos atrás. - Sei que eles estão orgulhosos de você. Sabe disso, não sabe?

A mulher de sessenta e cinco anos caminhou com dificuldade para a cadeira na varanda:

- Vovó Kathleen adorava música. Queria que ela tivesse me ensinado tudo que aprendi.

- Então... não foi?

- Não. Bem... muito pouco! Quase nada. Eu era muito nova. Seis, sete anos... ela me achava muito jovem para aprender a tocar piano. "Seus dedinhos não alcançam as teclas, querida." ela dizia. Em seguida me fazia um carinho no alto da cabeça, me enchia de beijos e dizia que um dia eu aprenderia. Bem... eu aprendi. Um dia. Sem sua ajuda. - ela pausou, respirou e Lea se aconchegou na cadeira ao lado. - Quando fiz doze anos, algum tempo depois da morte de vovô Hugo e de vovó Kathleen, papai passou por problemas financeiros. E novamente ali estava eu com mais um problema: A mamãe. Ela foi diagnosticada com um tumor cerebral e foram os meses mais dolorosos que pude suportar. Em menos de um ano veio a notícia. Acordei, e de repente... ela não estava mais lá. O quarto vazio. As paredes sussurrando lamentos. Papai estava parado, ali, olhando para a cama sem ninguém, triste. Lembro do último abraço que ele me deu. Foi naquele dia.

- Por que último? Ele também...

- Oh, não, não. Não morreu pouco tempo depois não. Ele durou bem mais. Tempo o suficiente para me fazer aprender piano.

Lea poderia sorrir, achar que aquela era uma história de superação, comemorar por tudo ter dado certo na vida de Jeyne, mesmo passando por obstáculos tão difíceis. Mas a expressão de Jeyne Kemble era tristonha, beirava a um estado depressivo.

- Lembro-me de cada dia, cada hora que ele me ensinou. - dizia Jeyne, o olhar fixo nas estrelas, marejado. - Aprendi da pior forma possível. Ele me acordava na madrugada, após beber algumas doses de licor. Ele tinha um vareta de quarenta centímetros nas mãos. Sempre tinha. Quando eu errava, ele batia com ela nos meus dedos. Eu ficava nervosa, com medo... então errava novamente. E logo mais outra batida nos dedos. Doíam, Deus, como doíam... - ela baixou a cabeça e uma lágrima caiu. - Lembro-me que ficavam vermelhos no início e a dor vinha de forma gradativa. Só quando me deitava, os apontava para a luz do abajur e via a roxidão em cada um deles. Então eu chorava. Bastante, sob as cobertas. Todos os dias.

- Por quanto tempo isso aconteceu, Jeyne? - Lea estava sentida com a história, sentia um aperto profundo no peito.

- Quatro anos. Todos os dias. - Jeyne a olhou. Seus olhos fundos e pesarosos. A sensação de que carregaram um fardo toda uma vida. - Uma vez, ele bebeu muito. Passou do limite. Copos de bebida estavam jogados na cozinha. Como sempre... ele me acordou no meio da noite. "Já para o piano, merdinha!" gritava. Então eu saía da cama, ainda zonza e ele me empurrava. "Vamos logo! Não tenho a noite toda! Já para o piano, imprestável! Vamos!". A maioria das vezes eu descia com toda a vontade do mundo de chorar. Mas segurava as lágrimas. Era difícil, mas eu o fazia. Então nesse dia eu estava muito tensa. Minhas pernas tremiam mais do que o normal. Errei toda a música e ele ficou nervoso. Muito nervoso. Então me levou a cozinha, acendeu uma das bocas do fogão e... - Jeyne parou, ela tremia. Lea a acalmou e em seguida ela continuou: - Ele segurou firme nas minhas mãos. Primeiro a direita, depois a esquerda. Levou meus dedos ao fogo e as suas pontas tostaram. Lembro que gritei como nunca aquela noite. Ainda sinto a sensação das chamas nos meus dedos... - ela levou a mão a frente do rosto e pôde ver, assim como Lea, as marcas.

Eram pequenas cicatrizes, em cada um deles. Levemente escuras e distorcidas.

- Mas eu aprendi a gostar de tocar. Era a única maneira de suportar a dor. A música me acalmava e me dava forças para enfrentá-lo. Meus dedos por muito tempo produziam uma arma contra minha dor. O som de cada nota do piano me renovava. Sempre foi assim! - ela recostou a cabeça no ombro de Lea e a agradeceu por ouvir. - Bem... vamos nos recolher. Amanhã iremos ao Danshiva e quero que seja perfeito!

- Sim! - concordou Lea, levando consigo a taça de vinho. - Vai ser perfeito!

O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora