Suas expectativas se frustraram assim que pôs os pés em casa. Emily sabia, no ínterim, que tinha deixado lacunas a preencher quanto a explicações para Jack. Ela sabia que ele tinha se magoado e que ela era a única que poderia tirá-lo dessa confusão. Fora um dia tumultuado, onde o pedido de perdão e a formação de uma nova amizade se entrelaçaram de maneira satisfatória para ela. Ou talvez para ambos, imaginou.
Ver a mãe estacionando o carro e atravessando o pátio em direção ao DUNIGAN tinha sido como ver um tornado se aproximando pela pista leste e que rapidamente chegaria até eles, devastando tudo por perto. E se Ivy chegasse alguns minutos mais cedo no restaurante de Simon e encontrasse Emily ali, acompanhada de um rapaz que a mãe nunca havia visto ou conhecido, o que pensaria? E, sinceramente, após ter saído de casa deixando a mãe e sua fiel confidente para trás, Emily sabia que não seria nada agradável que essa situação ocorresse. Muito menos fazer com que Jack passasse por algum constrangimento. A relação dos dois estava indo bem e ela não queria estragar tudo por causa de seus próprios caprichos.
A aula de piano começaria em instantes e Lea McMory estaria ali no horário certo. Quando Emily se aproximou da escada, viu que o pai estava de pé na parte mais afastada da sala de estar, que seria o canto de prateleiras, montado como se fosse uma pequena biblioteca moderna. Seus olhos percorriam cada título de livro, enquanto o charuto, pousado entre o bigode espesso e o lábio inferior liberava fumaça que subiam como uma neblina em direção às estantes mais altas. Emily se acostumara com o silêncio da casa, toda a vida vivera ali, acompanhada de seus pais, que mal discutiam relação. O pai se confortava na velha, porém bem cuidada, poltrona, lia o jornal, fumava o charuto e só erguia os olhos para ver a fumaça subindo e subindo. A mãe lia revistas ou cuidava de si a maior parte das vezes, ligando para algumas amigas ou então marcando um horário no NATURAL BEAUTY SPA. A maior parte do dia Emily não via o irmão, Norman, porque simplesmente ele não compactuava com o comportamento da família. Preferia estar com os amigos correndo com carros, pichando muros e pondo a vida em risco com todos os tipos de ações infratoras.
- Emi? - ela já estava retornando para o andar de cima quando ouviu a voz do pai. Virou-se e desceu os degraus para vê-lo melhor. - Preciso de sua ajuda. Venha até aqui, por favor.
As partituras nas mãos dela foram deixadas sobre o piano. Emily encontrou o pai com um dos livros nas mãos e o charuto na boca. Afastou-se um pouco quando a fumaça veio de encontro ao seu rosto.
- Papai, o senhor sabe que mamãe não quer vê-lo fumando nesse horário. - repreendeu Emily a Alfred.
- Sim, sim, eu sei disso. Mas ela não está! Não há problema algum. Agora... diga-me: conhece algum autor de refração?
Normalmente a estante do meio possuíam alguns livros de física, então Emily notou um de Hugo Meroah, um inglês que fazia pesquisas sobre elementos.
- Este é um bom livro. - disse ela, entregando o volume nas mãos do pai, que devolveu o que folheava para a estante. - Página noventa e sete. Refração.
- Ótimo, ótimo... - ele tirou o charuto da boca, devolvendo para o cinzeiro. Emily agradeceu silenciosamente o ato do pai. - Preciso pesquisar a respeito de mudança luminosa nos vidros da empresa. Obrigado, Emi. E aliás, como está indo na universidade?
- Bem... - ela tinha respondido de um jeito morno, quase como se tivesse incerteza que realmente estivesse indo bem. Ela pensou que ele a questionaria de novo, mas ele retornou o olhar para o livro, buscando o que queria, até parar na página indicada por ela.
Emily ficou ali, ao lado do pai, esperando que ele pedisse mais alguma coisa. Porém tudo que ele fez foi se dirigir à cadeira da biblioteca e ler a página do livro. Ela aproveitou para se retirar. Não demorou muito para a campainha soar. Emily atendeu e Lea McMory entrou na casa com um sorriso belamente prazeroso no rosto fino.
Uma das partituras voou e isso desconcertou Emily. A mãe, que nunca perdia uma de suas aulas, não estava presente. O pai continuava concentrado no livro de Hugo Meroah, os óculos pousados na base do nariz. Emily não sentia muita falta do irmão na maior parte do dia, mas ela tinha de confessar que ela o queria ali por perto, vendo como seus dedos deslizavam de uma tecla a outra, suavemente, às vezes mais rápido, às vezes mais lentamente. Lea a acompanhava na melodia, dizendo onde estavam os erros e os acertos, que tom estava a música, se mais rápida ou mais devagar. A última partitura foi mais fácil. Tinha um toque mais delicado de traçar cada tom, tocar cada tecla do piano, que Emily fechou os olhos por um instante e sentiu a música tomar-lhe o peito sereno. Lea McMory tinha os braços apoiados no piado, escutando com cuidado o processo evolutivo de Emily. Parecia satisfeita com o resultado. Ela tinha acabado de passar da metade da partitura quando o barulho da porta se fechando alto a desconcentrou. Emily olhou para trás e Ivy estava prostrada na sala de estar, com o rosto franzido, num incômodo.
- Você não poderia fazer isso, Emily Buster! Você não vai jogar toda a integridade de nossa família em um buraco sem fim! - Alfred tinha parado a leitura e agora observava as palavras da mulher. - Foi difícil aceitar o fato de Norman ter escolhido a vida que tem, longe de nossos modos peculiares, longe de nossos métodos de comportamento, afastado de nossa realidade! Norman saiu dessa zona de conforto para se envolver com aqueles amigos que o levam a uma realidade miserável que o mundo os mostra de maneira cruel, mas eles vêem como prazerosa. Por anos eu relutei e quis mudá-lo, mas ele não aceitou. Minha esperança passou a ser você, Emily! Você é minha filha e eu jurei que você sempre teria uma boa vida, diferente de seu irmão. Sempre achei que você escolheria viver do modo correto com tudo o que lhe oferecemos. E agora eu não vou suportar que você jogue tudo fora por causa de um garoto de zona baixa que a confundiu!
Alfred estava ao lado da mulher agora, tentando acalmá-la. Emily continuava sentada no assento do piano, engolindo cada palavra odiosa da mãe.
- Do que você está falando, Ivy? - perguntou Alfred. - Você não pode atacar nossa filha dessa forma!
Ivy encarou o marido e deu algumas risadas, uma lágrima descendo dos olhos.
- Ah, então essa é a hora! Você quer saber da verdade, Alfred? A verdade sobre a sua filha, que você criou com tanto esmero, defendendo os interesses individuais para que ela tivesse uma boa universidade e bons modos de vida? Saiba que essa filha está se envolvendo com um rapaz dos bairros baixos que a enganará e tentará tirá-la todo o dinheiro! O nosso dinheiro! - a mulher gritava e Emily parecia um cão recuado. Lea estava no meio do fogo cruzado.
Alfred olhou para a filha e parecia outra pessoa agora. Muito diferente do pai que há pouco a pedira um favor, e ambos conversaram civilizadamente. Ele a tomou nos braços e a ergueu do assento:
- Isso é verdade, Emi? Fale que a sua mãe está mentindo com relação a isso, diga que isso é mentira! DIGA-ME! - gritou Alfred, apertando seu braço. Emily derramava lágrimas agora, seu choro era de confusão. Ela tinha de dizer a verdade, não suportava...
- Simon contou-me que ela esteve lá com o sujeito! Nunca pensei que chegasse a um nível tão baixo essa nossa filha, Alfred! - disse Ivy, na sala de estar.
- Se sua intenção, Emily Buster, for manchar o nome dessa família, jogar tudo fora, tudo que me esforcei e continuo me esforçando para que você seja uma pessoa decente, não se engane! - Alfred estava possesso agora, muito mais do que Ivy.
- Quer saber, vocês dois? - ela os olhou com um olhar desafiador. - Por que eu sempre tive que ser o barro que seria moldado por vocês dois? Eu sempre sou uma ingênua marionete que vocês podem manipular por toda a vida! E você, papai... espera tanto de mim, quando nunca conseguiu segurar Norman por suas atitudes!
Alfred soltou o braço de Emily e o tapa que veio em seguida a fez tombar sobre o piano. Lea interferiu se pondo entre os dois:
- Por favor, senhor Buster... ela é sua filha! - a mulher tremia.
- Não mais... - disse o homem. - Enquanto ela não esquecer esse sujeito, que sinceramente espero nunca vê-lo, ela não estará acompanhada de um nome meu.
Alfred tomou o livro nas mãos e foi ao andar de cima. Ivy acompanhou o marido. Lea confortou Emily, deixando-a tranquilizada. A jovem chorava, as lágrimas esquentando na marca do tapa do pai em seu rosto. E isso doía muito menos do que ver o rosto de Jack Field se apagando de sua cabeça.
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...