30.Emily

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Os lençóis eram fantasmas, a cama um martírio que a sugava em domínio, o travesseiro tinha o conforto de um bloco de concreto sob sua cabeça; tudo culminava nos mais delirantes pesadelos.

Um deles refletia dor e perda. O rosto de Andy aparecia em meio a centenas de outros rostos, uma confusão de faces que apareciam num deserto de sombras, umas risonhas, outras chorosas. A expressão de Andy não passava de uma carranca. Emily não soube ler exatamente o que ela sentia.

Frio...

O leve sussurro saído de seus lábios ecoou pelo deserto de faces, em meio a grunhidos e reclamações, um tornado de lamentações, umas mais lamuriosas que outras.

Frio...

Outra vez. Emily recuou no espaço do pesadelo, atordoada. O rosto de Andy tinha sumido e agora via olhos saltados a encararem, os rostos pálidos e trêmulos.

Está frio... encontre-me... Emy...

O coração acelerado, o peito arfando e o suor impregnado nos lençóis a fizeram despertar. Tentou se localizar em meio a realidade, encontrar-se sóbria após um pesadelo daquela dimensão. Levou as mãos ao rosto e chorou. Norman não revelara nada a respeito do crime, onde tinham deixado o corpo ou se ao menos teriam se preocupado com o local onde deixariam.

Depois disso Emily vestiu o robe de seda, desceu as escadas e caminhou pelo corredor que dava até a cozinha. A água tinha refrescado sua garganta. Tinha a sensação que alguém a tinha sufocado durante a noite. Passava as mãos pelo pescoço, sentindo-a dolorida.

No dia seguinte encontrou o que achou que nunca veria: a mãe, na biblioteca que comumente era usada pelo pai, folheando um álbum. Ela parecia deslocada e fora de si, a calmaria a tomando da cabeça aos pés. E isso decorreu pelo resto do dia.

Faltavam cinco dias para o casamento e Emily se via um torpor maligno, fadado a deixá-la louca, sem qualquer possibilidade de se regenerar. Jack. O que ele estaria pensando dela? Provavelmente que eu enlouqueci, pensou. Lembrou-se do momento que deixara o quarto dele para escrever aquela carta, cheia de esperanças contornando as letras, cheia de confiança que tudo daria certo. Achou que havia tomado a atitude correta, achou que estaria pensando em Jack quando fizera aquilo. Mas chegou à conclusão que pensara somente nela mesma, em seu excesso de autoconfiança. Se pudesse pelo menos sair da casa e chegar ao jardim talvez ela pudesse fugir novamente, enfrentar de novo a liberdade de si mesma, de sua alma, e dessa vez não cometeria o mesmo erro. Mas a verdade era que os pais estavam muito mais sob vigília e provavelmente a trupe de Norman estava por perto para qualquer imprevisto.


* * *

- Você está linda! - Ivy Buster a olhou de cima a baixo, enquanto a costureira se afastava com a agulha na mão e a linha na boca. - Oh, Emily, deslumbrante, realmente!

- Mui bela, senhorita. - falou a estilista, o sotaque elevado, acertando um ponto na base do vestido de noiva encorpado em Emily. - Mas non sei parra quê casar-se ton cedo!

Ivy Buster encarou a mulher, repreendendo-a:

- Você já realizou o seu trabalho, não tem que se meter onde não deve! Afinal cuide apenas da venda e ajuste do vestido, nada de pôr o nariz em nossa vida pessoal!

A estilista engoliu em seco, retornou a agulha para a cintura do vestido, arrumou as pérolas locais e não disse mais nada.

Emily encarou a si mesma no espelho, os olhos fitando um reflexo de outra pessoa. Não se reconheceu naquele vestido, principalmente pelo momento que passava. Quis virar-se para a mãe, curvar-se e ficar de joelhos, pedir perdão e piedade. Mas ficou firme. Sabia que não era sensato tal atitude. De qualquer modo o casamento era amanhã e não tinha mais nada a fazer. Ao término dos ajustes a estilista deixara a casa, com ar pomposo de dama francesa, o coque no alto da cabeça bem-feito e os óculos miúdos de meia-lua.

- Acho que ficou ótimo, não concorda, Emi? - perguntou a mãe.

Emily a encarou por alguns segundos odiosos e subiu, sem dizer uma palavra.


* * *

Durante a tarde, Emily observava algumas partituras que estavam no armário com o nome de Jeyne Kemble. Ficou observando as assinaturas em cada uma delas. Da própria Jeyne, mas poderiam estar assinado "Emily Buster" no canto superior da folha. E ela agradeceu por isso. Jeyne era uma excelente pianista e uma professora dedicada, não poderia passar por tal humilhação.

A mãe tinha saído e Emily não tinha a mínima ideia para onde. O pai estava na empresa desde aquela manhã, e Norman com a trupe em algum lugar da cidade. A única pessoa que via ao olhar pela janela, prostrado ao lado do carro, era Brandon. Vez ou outra limpava uma mancha no capô, tirava uma folha que pousava sobre a lataria vinda de uma das árvores por perto. Então um rosto conhecido apareceu além das grades do portão dourado. "O que ele faz aqui?" perguntou a si mesma.

Brandon tentou impedir que o homem entrasse. O sujeito tentava se explicar, mas o motorista desdenhava. Então Emily, da janela gritou:

- Está tudo bem, Brand! - sua voz chegou aos ouvidos do motorista, que se sobressaltou. - Eu conheço o senhor Fedrich!

Sem dizer mais nenhuma palavra ela deixou o quarto, desceu as escadas e um momento depois estava no jardim. Os pais haviam advertido que ela não poderia cruzar os limites da casa, mas eles não estavam. O que havia de mais em receber um amigo?

- Emily, você deveria retornar para seu quarto! Sua mãe...

- Senhor Fedrich! - disse ela, ignorando Brandon. Chegou ao portão e o abriu, dando passagem para que ele entrasse. - Fico feliz em vê-lo novamente. Como soube que onde eu estava?

- Jack. - o som daquele nome saído de Carlton Fedrich provocou um sorriso fixo no rosto de Emily. Ela fechou o portão, notando uma preocupação visível em Brandon. - Ele foi de muita ajuda! Ele é um bom rapaz.

- Eu sei. - o sorriso se alargou, lançando um risinho. - Sei que é.

Contra a vontade de Brandon, que bufava ao retornar para junto do veículo, Emily levou Carlton Fedrich para o interior da mansão.


* * *

- Sei que é confuso. - disse Carlton, tirando outro peso das costas. - Mas eu preciso saber se é verdade. Norman... é esse o nome dele, não é?

Emily estava boquiaberta. A mãe nunca havia comentado nada sobre ter se relacionado com alguém antes de Alfred e que tudo levava a possibilidade de que eles pudessem ter tido um filho. Carlton...

- Sim. - confirmou Emily. - Esse é o nome dele. Mas...

- Onde eu posso encontrá-lo? - os olhos esperançosos do homem contornavam cada traço surpreso do rosto de Emily.

Antes que ela pudesse falar algo, a mãe entrou bufando na casa, invadiu a sala de estar e começou a gritar:

- Eu quero que deixe esta casa e não procure mais nem a mim nem aos meus filhos! Esqueça que um dia tivemos algo porque eu fiz questão de apagar tudo dessa parte da minha vida! Todos os dias tento esquecer um pouco tudo que vivi naquele ano, Carlton! Você não pode simplesmente aparecer agora como se nada tivesse acontecido, como se todo esse tempo você estivesse viajando e dizer que Emily é sua filha! - ela o encarou de perto, algumas veias saltadas na testa e no pescoço. - Pois bem Carlton! Se é o que quer saber eu poderei repetir! Emily não é sua filha! Alfred e eu nos amamos e você não destruirá nossa família com isso agora! Chega!

- E quanto a Norman? - sua pergunta fez Ivy estancar, ficar sem palavras ou ter mais algum acesso de fúria. A bem da verdade era como se a resposta se transformasse em cinzas em sua boca, obrigando-a a não mentir.

- Isso é verdade, mãe? - Emily fez questão de perguntá-la. - Norman é...

- CHEGA! - o grito dessa vez foi mais estridente e a porta se abriu, sem que Ivy percebesse. - Mesmo que Norman fosse seu filho ele nunca iria saber que tipo de pai é você!

- Pai? - a voz que saía da direção da porta fez Ivy enfraquecer, esgotar qualquer palavra que tinha a jogar no ar. - Alguém pode me explicar o que está acontecendo? Sou um bastardo, é isso?

Norman encarava a todos na sala de estar, o silêncio pairando no ambiente. O único barulho que se pôde ouvir um momento depois foi a porta batendo furiosamente quando ele a fechou.


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