Ele não acreditou que a estava vendo novamente.
Seu rosto ainda estava claro em sua memória, fresco como uma história recém-contada. Os olhos dela se aproximavam e ele pôde sentir o doce aroma de seu perfume inundar o ambiente. Ela estava só dessa vez, sem a garota de olhos repuxados. O seu corpo pintado e estático o proibia de dá-la alguma atenção.
As últimas semanas foram um torturante sacrifício. Jack acordava todos os dias com uma dor no peito. Não uma dor que contrai os músculos do peitoral e os deixam doloridos em resultado do dia de trabalho, mas uma dor que rastejou pela fina camada na superfície de seu bondoso coração e impregnou uma parte dele que desconhecia. Era uma parte de culpa. Nunca destratei ninguém dessa forma. pensava ele durante as noites em claro. Fui um tolo. Ela merecia minhas considerações. Ela só quis... ajudar...
No entanto, ao decorrer dos dias, a garota de nome Emily não retornara ao viaduto Grand Mary. E isso o causara um maior desconforto. Sua culpa acabou se por se transformar em pesadelos, onde ele acordava no meio da noite com o corpo banhado em suor, os olhos inquietos olhando as paredes e as mãos tocando o peito arfando sem parar. Os dias correntes foram como pêndulos gigantes, cruzando uma faixa do tempo infinito, tempo esse que demorava até que Jack visse Emily novamente.
Talvez fosse por quê nunca se apaixonara.
Paixão. Quem dera fosse uma palavra que substituísse um sentimento de exagero, de culpa, mágoa ou sofrimento. Quem dera a paixão pudesse preencher aquilo que chamamos de amor. Nos apaixonamos, esquecemos... simples! O amor não! Era uma vez a paixão... É uma vez o amor. Quem dera o que Jack Field estivesse sentindo fosse apenas passageiro, uma parte da alma que acabou desbotando e logo, logo se consertaria. Quem dera se o peito que arfava, sofrendo em tamanha culpa, se desculpasse. A noite caísse e o som do trovão cessasse... e nessa hora a imagem de Emily lhe surgisse a frente, bela e estonteante. Nessa hora um e um são dois, e dois e dois são cinco. Nada mais está certo.
Os olhos de Emily o encararam e ela esperou que Jack pudesse dar um sinal, dizer algo, demonstrasse que queria ouvi-la. Ele sentiu um pouco do aperto no peito se esvair. Pouco a pouco seu coração tomou a sanidade.
- O que faz aqui? - sua pergunta foi direta. Não havia mais nenhum público por perto. - Achei que nossa conversa tinha acabado!
- E por que acabaria? - a voz mansa de Emily, seguida de um sorriso meigo o desnorteou. Ela segurava uma bolsa pequena nas mãos e estava melhor do que o dia que a vira pela primeira vez. Seu vestido de algodão tinha comprimento suficiente, mas deixava os joelhos à mostra, e com um deles um curativo. - Ainda tenho bastante a dizer. Sua teimosia deixou-me nervosa aquele dia... me excedi e confesso que me arrisquei quando decidi tomar a frente da situação.
Jack guardava seus pertences em uma maleta. Montou um espelho, prático, e com a ajuda de um pano úmido limpou todo o cinza do rosto. Não disse absolutamente nada enquanto Emily esperava algo de resposta. Ela apenas observou seu rosto ganhar uma tonalidade diferente, o rosado da pele aparecer por trás daquela maquiagem cinza de estátua. Em determinado momento Jack se arriscou a olhar para a jovem através do reflexo no espelho, sem contar que os olhos dela viriam de encontro ao seu. Do contrário que imaginou ele não desviou o olhar do dela, que o encarava de maneira satisfatória. No momento certo ambos se desligaram da conexão de olhar e voltaram a si. Jack continuou a tirar toda a maquiagem do rosto.
- Então? - ela soltou, repentinamente a pergunta;
Ele a olhou novamente pelo reflexo do espelho e respondeu em questionamento:
- Então o quê?
- Estou esperando que você fale alguma coisa. Talvez... desculpas? - o modo como ela falou aquilo o fez acabar de vez com a culpa que sentia:
- Tudo bem. Se é isso que quer eu o farei... desculpa! Eu não deveria ter me comportado da forma tola que me comportei, é só que... tenho instinto de proteção, só isso!
Emily segurou uma risada e buscou não ofender:
- Instinto de proteção? - ela se recostou na mureta do viaduto. - Prefiro crer que você só agiu daquela forma por ter gostado de mim.
- Perdão... mas não acha que está sendo um pouco convencida? - perguntou Jack.
O momento seguindo nem ele nem ela esperavam. Os dois riram da situação. Provavelmente o que viria depois fosse ainda menos possível. Jack aceitou que Emily o levasse junto com a família para casa. Seria injusto não dizer que Emily quase implorara de joelhos.
Jack Field estava se sentindo mais aliviado. Emily era uma garota interessante e provava ser mais parecida com ele do que Jack tinha imaginado. Por duas ou três vezes ele vira os pais sorrirem no banco de trás do veículo. O BMW era um belo modelo vermelho que Jack provavelmente sonhara em ter um dia. Sonhos... sonhos...
E agora estava dentro de um. Recebendo uma carona de uma garota que via apenas pela segunda vez na vida, relaxado por não estar com um acesso de culpa por ter feito o que fez com ela. O mínimo que Jack poderia fazer seria aceitar um pedido de desculpas por parte da garota, mesmo que esse pedido viesse com quatro rodas.
- Bom... não há mais nada a se fazer, não é? Então... pedido de desculpas aceito... - os pais e a irmã de Jack já tinham entrado em casa e ele encarou Emily de maneira sofrível. Era provável que fosse a última vez que a visse. Ele fez algo tolo a ela, se desculpou, ela aceitou as desculpas e nada mais. Ela iria embora e Jack voltaria para sua vida, agradecido por conhecê-la.
- Prefere que eu espere aqui mesmo ou entre? - perguntou ela e Jack franziu o cenho, não entendendo nada:
- Do que está falando?
Ela deu um meio-sorriso e desligando o carro, disse:
- Enquanto você troca essas roupas. Não quero que tenha uma imagem ruim de mim... então vamos ao DUNIGAN.
Jack ficou boquiaberto. DUNIGAN era o restaurante mais bem requisitado ao norte da Carolina do Norte. Ele pensou em recusar, mas sabia que se fizesse isso a culpa que sentia no dia anterior iria vir com força naquela noite. E ele não estava preparado para confrontar seu coração novamente.
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...