31.Jack

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Não havia uma única nesga de esperança que transparecesse em seus sonhos. Jack Field se encontrava há dias num estupor deveras patológico, tomando o termo de ápice da palavra. Cada sonho parecia tomado de um símbolo flamejante, onde sua vida era posta a prova e seus sentimentos crucificados sem piedade.

Ele acordou em meio a um frio de começo de manhã. A família se preparava para ir à Grand Mary. Há dias não se sentia tão deslocado.

- Você tem certeza, querido? - perguntou a mãe, parada a porta, uma das mãos ocupada pela maleta surrada cheia de materiais. - Eu tenho algumas peças, tecidos que você pode usar... ficariam bem em você. Use minha tinta para a pele, acho que tem o suficiente para nós dois.

- Tudo bem, mãe. Eu ficarei bem. - ele não queria transmitir qualquer fraqueza em relação ao apego aos materiais perdidos. - Talvez outro dia eu possa acompanhá-los novamente.

- Também acho que você deveria vir conosco. - Michael apareceu à porta logo após caminhar por alguns metros para longe da varanda. - Não se deixe abater por pessoas estúpidas e isentas de paz, Jack. O melhor que podemos fazer é nos reerguer. Faça isso!

Jack mergulhou no silêncio, sentindo-se cada vez mais distante e vazio.

- Oh, certo, certo... respeitaremos sua decisão, filho. - Michael pôs uma mão no ombro de Mandy e ela atravessou a saída. - Tenha um bom-dia.

Após um momento se pegou pensando no que dissera a Carlton Fedrich. Norman...

No fundo reverberava uma vontade gritante de Norman não ser filho do senhor Fedrich. Jack imaginou se tal possibilidade fosse concretizada o império dos Buster desabaria.


* * *

Aproveitou a manhã para visitar uma amiga comum dele e de Emily. Ainda conseguia sentir a sensação do primeiro dia, quando passou por aquelas casas que levavam a um destaque principal de um único casebre. Jeyne Kemble apareceu à porta com a sempre simpatia lavando seu rosto pesaroso. No fundo do semblante da pianista, tomando forma de uma máscara oculta, tinha um pesar, e Jack notava. Mas parecia que tudo se esvaía num segundo, fosse com um sorriso ou com seus dedos deslizando nas teclas de um piano.

- Oh, Jack, Jack... lembro-me de você! - ela o abraçou, beijando-o suavemente nas duas bochechas e convidando-o a entrar. - Devo considerar que retornou para ver mais um de meus espetáculos?

- Oh, não, Jeyne. Não quero incomodá-la. - respondeu, sincero.

- De maneira nenhuma! Seria um prazer... preciso esticar um pouco meus dedos e seria uma excelente condição para isso. - ela sentou-se na cadeira de sempre, esticando as pernas e deixando os óculos sobre um livro de Victor Hugo. - Para falar a verdade minha noite não foi das melhores. Minhas mãos estão doendo muito ultimamente, e só melhoram quando me arrisco em uma melodia ao piano. Me tranquiliza. Sabe bem... a doce sensação de um apaixonado por música. É como os cientistas! Passam muito tempo da vida se dedicando à arte das descobertas, sem medir cansaço, esquecendo qualquer dor... persistindo até os ossos! Sempre em busca de um resultado final. E quando o alcança, eureka! Descobriu o sentido da vida!

- O sentido da vida. - repetiu Jack, pensando na frase como um grande ponto de interrogação, tomado de um mistério envolvente. - Engraçado como parece que a vida nunca faz sentido!

- Bom, meu rapaz... ela pode fazer sentido para aqueles que dela se aprazem! Sentido da vida é vivê-la e não querer sobreviver a ela. Saiba que a cada momento que invento uma nova canção me sinto renascida, rejuvenescida, reencarnada; Quando toco a melodia e todos ouvem, admiram e aplaudem, minha alma agradece tal momento. Há muito sei que eu não existiria sem me encontrar na música. Se eu repousasse todos os anos de minha vida numa caverna, faria questão de ficar louca, imaginar um piano à minha frente, só para poder tocá-lo. Meus dedos encostariam as teclas invisíveis, mas quem se importa? Eu não me importaria... imaginaria a música saindo, tomando o ambiente e me embalando. Porque sei que é dela que vivo. Meu respirar, meus movimentos e vivência são embalados nas notas que seguiram-me por toda a minha vida. Então, meu bom rapaz, você me entende? - ela o olhou de maneira frágil, tomada de alegria. - Para mim esse é meu sentido da vida! Você com certeza tem um!

Jack pensou um segundo. O seu sentido da vida estaria preso no fundo de sua mente, tentando quebrar a caixa craniana e levá-lo como uma luz para seguir um objetivo? Ou mesmo seria ele, que não enxergava-se mais no próprio reflexo?

Não mediu quanto tempo passou ao lado de Jeyne Kemble. Tiveram quase meia hora de conversa, antes que ela lhe servisse um suco de ervas. Entraram novamente na sala e ela tocou outra canção, Jack novamente vendo os quadros se iluminarem com a melodia. Sentiu falta daquilo. Realmente, sentiu falta. Sentiu-se à vontade para escutar sobre Emily tudo que Jeyne tinha a dizer. E surpreendentemente eram as mesmas palavras de Simon Mobron.


* * *

Ele avistou uma sombra na varanda quando chegou no perímetro de casa.

- Posso ajudar?

Jack viu um rapaz que ele não reconhecia rondando entre uma janela e outra da varanda. A voz de Jack fez ele ter um sobressalto e dar um sorriso sarcástico.

- O que está fazendo aqui? - perguntou Jack. - Como soube onde eu morava?

- Tenho meus meios, Jack Field. É esse o seu nome, não é? - falou William Lambert, os mesmos traços arrogantes de quando Jack o viu pela primeira vez na estrada de terra quando resgatou Emily.

Ivy Buster, o nome lhe veio à cabeça. Com certeza foi ela.

- Não me importa o que veio fazer aqui, contanto que dê meia volta e saia da minha casa! - Jack se encontrava na varanda agora, frente a frente com o rapaz. - Você já desgraçou a vida de Emily o suficiente, deveria estar consciente disso!

- Desgracei? - ele riu, batendo com um envelope nas mãos. - Talvez esse não seja o termo correto a ser usado na véspera de um casamento!

Jack não havia engolido as palavras dele até que William o entregasse o envelope. Num movimento rápido tirou o convite. A cerimônia de casamento seria no dia seguinte durante a tarde, na mansão dos Buster. Havia um teor real no convite num dourado chamativo. Um brasão emoldurava a parte superior do papel e claramente Jack pôde ler:

"EMILY RAMES BUSTER  &  WILLIAM TEODORE LAMBERT."

Qualquer possibilidade de retornar o olhar para o rosto de William naquele momento estava ignorada. Aquele convite, ter que encarar que realmente aconteceria... Jack ficara arrasado.

- Então, Jack? - ele tinha se aproximado, o que Jack nem tinha notado. Tocou-o no ombro numa combinação de ironia e sarcasmo. - Agora que nos conhecemos, aceitaria outro convite meu?

Jack pôde encará-lo. Seus olhos trêmulos, revoltantes.

- Padrinho... - o sorriso de William, cheio de dentes enfileirados, reluziu no rosto de Jack. - Então? Aceita?

William não soube medir o momento exato que desmaiou. Fosse pelo soco de Jack ou pôr bater a cabeça nos degraus da varanda quando caiu. Os dedos de Jack só vieram a doer meio minuto depois, quando sentiu o frio do cabo da faca na palma da mão. A cozinha nunca pareceu tão perto. Ele encarou Will desacordado, o vento soprando como testemunha.

Livre-se... Liberte... Emily... faça... faça...

Jack fitou o peito de Will e o brilho na ponta da lâmina da faca, suas mãos tremiam, o convite há muito caído no chão, rasgado em quatro pedaços. Fechou os olhos, criando forças e então...

Cravou.


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