49.Emily

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Era melhor assim.

Emily sabia, no fundo de sua alma, que era melhor assim. Deixar a casa de Brandon e partir de volta para a cidade. A verdade era que não estava segura em lugar algum, tampouco na própria cidade. Mas tinha uma escolha a fazer.

Eu o vi, tenho certeza, tentou convencer a si mesma. Eu vi Norman... e era assustador.

Talvez se convencesse de que estava ficando louca com tudo aquilo e era provável que fosse verídico. E ela estava amedrontada, acuada, inteiramente reservada.

O irmão que conheci... não o vejo mais naquele monstro!

Estavam a caminho. Emily tinha a companhia de Jack e nada mais importava. Brandon dirigia e o retorno para o lugar onde cresceu provou a Emily as vertentes de uma teoria. Por mais que o vento rodopiasse, atingisse as montanhas, os picos nevados, arrancasse tetos e puxassem e repuxassem galhos frágeis, ele sempre seria o mesmo.


* * *

Tinham se passado as vinte e quatro horas após ter pisado novamente naquele lugar. Um agradável frescor de tarde a atingiu e como de costume Emily pôde se realizar consigo mesma por se sentir tão feliz.

Não se surpreendeu por não sentir falta de casa ou saudade dos pais. Era um sentimento naturalmente brotado em seu peito que rangia toda vez que tinha convicção da própria personalidade. O único modo de acabar com tudo aquilo era tirar o passado da cabeça. Tudo o que importava agora era sua nova vida ao lado de Jack. Tinha procurado Jeyne logo depois que retornou, acompanhada de Brandon. Jack ficara na oficina de Terency Milton.

Uma das vizinhas, uma mulher de cabelos cacheados e grisalhos, logo notou a presença das duas figuras à porta da sra. Kemble. Ela trazia um pinscher minúsculo na coleira.

- Oh, ela deixou-me de butuca - disse a mulher, sorrindo com uma bela dentadura. - Ela partiu com uma amiga para Portugal e não sei quando retorna.

- Amiga? - perguntou Emily, sem querer.

- Sim, querida. Uma pianista também, pelo que soube. - a velha mulher deu as costas e entrou na casa, o cachorro puxando a coleira para subir os degraus da varanda o mais rápido possível.

- Lea... - disseram Emily e Brandon ao mesmo tempo.

Então regressaram. Tiveram que ir até a oficina de Terency novamente.


* * *

William Lambert se encontrava num estado deplorável.

- Ele realmente não quis se alimentar? - perguntou Emily, tomando uma leve preocupação pelo rapaz, que permanecia desacordado e amarrado na cadeira, a aparência esquelética sobressaindo no rosto e nas clavículas.

Como pode ter emagrecido em tão pouco tempo? pensou Emily.

- Não. - disse Terency, aliviado por eles estarem ali. - Acho que o ego inflado que esse aí tem enche bem a barriga, mas nem tem sustância para os ossos!

- Sinto muito pelos policiais, Tery. - Jack veio pela porta, um pano boiava em um balde com água.

- Policiais? - Emily ficou estarrecida, olhando freneticamente de Terency para Jack, de Jack para William desacordado, e deste de volta para Terency.

- Não, agora está tudo bem. Pelo que parece foi uma denúncia anônima! - contou Terency.

Brandon vigiou de perto o garoto desacordado. Não parecia o filho do grande médico Otelo Lambert. Parecia um peregrino do deserto, faminto e fraco. Mesmo os olhos fechados tinham profundidade e roxidão.

- Bem, vamos ver se ele acorda! - Jack tirou o pano encharcado de dentro do balde com água, levou até acima da cabeça de Will e torceu.

Água gelada escorreu pelos cabelos do rapaz, descendo suavemente pelo rosto e encharcando a roupa. Jack teve que levar três a quatro vezes o pano encharcado e torcer. A quarta vez era tensa, todos achavam que William Lambert  tinha sido carregado pela fome, que sua alma jazia no paraíso das comidas, livre. Mas na quarta ele despertou num rompante, tremendo de frio e os olhos arregalados. A boca aberta suspirando e seu olhar amarelado percorria todo o ambiente, olhando cada um deles nos olhos. Emily viu quando ele parou seu olhar nela, encarou-a de modo intrigante e e voltou a tremer:

- Desgraçados... me soltem! Soltem-me daqui! - suplicava Will.

Jack o olhou com mais firmeza.

- Ele está bem. - e se afastou. - Acho que agora você tem de me agradecer. Na primeira vez eu o apaguei, agora o trouxe de volta.

O rosto de William era apático, ao redor dos olhos estava tão escuro quanto o roxo comum na olheiras, os lábios muito ressecados e incolor.

- Você... - disse, quando todos se viraram para sair do quarto. Emily sabia que ele se dirigia a ela, então o encarou. - Me traiu. Traiu a sua família! O casamento?

- Bem... não houve casamento! - Emily dissera aquilo com uma segurança que só ela poderia dizê-la. Um sorrisinho de canto provava sua resistência a Will.

William novamente ficou para trás, em companhia apenas das cordas e da cadeira, suspirando o ar denso do ambiente fechado e o incômodo mortal da escuridão.


* * *

Era pouco mais de cinco horas da tarde quando Terency chegou até a sala de estar. Ele tinha acabado de ir a oficina e Emily viu a expressão assustada em seu rosto.

- Ele fugiu! - soltou.

- Não pode ser! - esbravejou Jack. - Isso é impossível! Como?

- Não sei, não sei... - respondeu Terency, com nervosismo. - Quando cheguei... não o vi. Tinha apenas a cadeira e as cordas... a porta estava aberta, a oficina... droga!

Emily não conseguia entender nem dizer uma palavra. Travara no mesmo lugar, imersa num casulo de inconformidade.

- Ele levou um dos meus carros! - Terency chutou o sofá com força e Jack o acalmou. - Aquele filho da mãe... ele vai contar tudo!

- Agora é tarde! - disse Emily, aceitando que tinham perdido a batalha contra William Lambert.

- Emily tem razão. Já aconteceu e não temos como impedir. - concordou Jack.

Enquanto todos ali na sala permaneciam inconformados com o que tinha ocorrido, William Lambert seguia na estrada no carro de quem o tirara dali.

- Não se preocupe querido, logo, logo verá seu pai. - a voz de Ivy Buster como um canto angelical em seus ouvidos.

O Amor É CinzaOnde histórias criam vida. Descubra agora