Os alecrins surgiam no pé da colina, sugerindo o início da primavera. Os Field tinham uma bela casa ao norte de Beltrow, com dezenas de roseiras surgindo no sopé, embelezando o caminho ladeado de terra batida que levava até a casa. Era de lá que um barulho diferente de tudo que os vizinhos que datavam da década anterior tinham ouvido.
Insuportável, como alguns definiam. Era o que pensavam.
Para os Field não passava de uma diversão diária, onde o filho tinha um tempo livre para "socializar" com os amigos. A banda se chamava "Os destruidores de Petros", em referência ao grande gigante Petros das histórias de uma velha babá que os contava todas as noites.
"E o grande Petros veio e se foi, assim como os gigantes vêm e vão. Partiu do mundo dos mortais após os garotos o destruírem. Ainda se ouvia o barulho dos sons onde Petros estava enterrado. Hoje não se sabe exatamente onde, mas os ruídos que o vento faz no pé das montanhas são gritos do gigante em agonia."
A história os transformava em aficionados fãs dos destruidores de Petros. "Não seria melhor Os assassinos de Petros?" perguntava Joe, insistindo durante uma semana no mesmo. No final ficou Os destruidores, e Joe aprendeu a conviver com o nome da banda.
Joe Melacorn era o mais jovem dos quatro, tinha os cabelos tão loiros quanto a cor dos olhos, um mel claro. Tinha doze anos na época e sua altura definia um peso excessivo da guitarra a sua frente.
"Talvez deva tomar o chá de Anne, Joe. Está parecendo um burro de carga velho tentando erguer essa guitarra do dobro de seu tamanho!" comentava David, o que deixava Joe aos nervos.
"Talvez você deva tomar na bunda, David!" Joe tinha se irritado com o jovem ruivo, sardento e cabelos encaracolados que agora ria por trás do baixo.
"Na bunda?" David caçoou. "Olhem como o bebezinho diz... na bunda! E você Melacorn, vai tomar no..."
"Já chega! Parem vocês dois! Pega leve David..." pela porta surgia Michael Field, os cabelos enegrecidos e alguns fios de barba nascendo no queixo.
Joe soltou a mão do baixo de David, que retornou ao quadrado marcado no chão rindo baixinho. Michael Field era o mais velho da banda e o líder. A casa com roseiras onde tinham os ensaios pertencia a ele, então tinha de pôr ordem e qualquer caso que viesse a prejudicar o desenvolvimento dos Destruidores de Petros.
"Paterson!" Michael apontou para um garoto gordo sentado na bateria. "No ensaio anterior você pareceu agressivo demais... tenta ser um pouco mais técnico!"
O gorducho de nome Paterson balançou a cabeça e uma papada abaixo do queixo de moveu de forma flexível. Girou as baquetas no ar e deixou uma delas cair. Desleixado, apanhou-a rapidamente, deixando a outra cair dessa vez.
"Com todo esse peso ele poderia mesmo pegar pesado!" outra piada de David, outra risada, e então outra repreensão de Michael:
"Jimes! Já falei para pegar leve!"
Com a bronca o ruivo se calou e testou o baixo em seu canto. Michael ajustou mais alguns botões na caixa de som antes de se encaminhar para o quadrado no centro da sala, onde estava o microfone. Outra guitarra, esta um pouco menor que a de Joe, porém mais pesada, foi manejada por ele.
Michael Field fez a contagem regressiva e então começaram a tocar. O ensaio durou pouco mais de duas horas e todos saíram dali cansados, um desgaste mental e cãibras nos dedos. Talvez Anne fizesse algo...
Eles a encontraram na sala de jantar, limpando a vidraça da janela. Anne tinha quarenta anos e não tinha filhos ou marido. Era empregada dos Field desde que Michael nascera, numa tarde de Dezembro, enquanto a sra. Field estava passeando na praça. Então passou para babá, além do emprego que já tinha. Cuidar da casa e do filho dos Field. Desdobrou-se. Conseguiu.
"Tocaram bem hoje, meninos." elogiou Anne, assim que eles pisaram na sala de estar. "Devem estar famintos!"
"Não faça perguntas tolas, Anne!" disse David, sentando-se na cadeira e levando os pés para cima da mesa. "Prepare-nos um bom sanduíche! Nada de queijo para mim!"
O modo como David tratava Anne era mais do que um costume para ela agora. Antes ela o tomava como um pirralho que não tinha educação, não pedia licença ou se importava de fazer o que quisesse, onde quisesse. Agora ela apenas sorria e esquecia que David um dia lhe causara chateação. Ela amava a todos como filhos e David era a erva daninha dentre eles.
Anne preparou os sanduíches e todos eles comeram bem. Havia preparado três para Paterson, que ainda assim terminou antes que todos pudessem chegar a metade do primeiro.
"Você foi bem hoje, Joe, querido." ela sentara ao lado do garotinho de doze anos e lhe acariciava os cabelos. "Ouvi sua guitarra daqui!"
"Verdade, Anne?" ele iluminou o olhar, encarando-a com orgulho.
"Verdade sim, querido. Ouvi." ela o beijou na bochecha rosada, se retirando, e Joe encarou David com ar presunçoso.
Michael, Joe, David e Paterson participaram duas semanas após aquele ensaio do XV Concurso de Bandas de Beltrow. Não foram classificados, o que fez David e Michael brigarem seriamente dias depois. David deixou a banda após Michael o culpar.
"Se você fosse menos egocêntrico, talvez tivéssemos uma chance!"
"Você é o líder, acha mesmo que serei eu o responsável?" gritava David.
"Não há liderança se tem um idiota que banca o esperto em todos os ensaios, implicando com um garoto menor do que você e fazendo piadas com Paterson!" replicava Michael, furioso, uma das baquetas na mão.
"Esse não é o problema, Field! O problema é você que não sabe conduzir essa porcaria de banda do modo correto!"
"Então fale-me, David! Qual o modo correto? Não... espera! Acho que você não tem competência nenhuma para me falar isso!" retrucava Michael, próximo o suficiente de David para encarar suas sardas em todo o nariz.
"Foda-se, Michael!" foi a última coisa que David disse antes de tomar a saída e sair dali.
David Jimes nunca mais foi procurado por Michael novamente. Viram-se duas a três vezes, mas não se falaram. A última vez que vira David ele não tinha mais os cabelos encaracolados, era como se tivesse raspado e os fios avermelhados começassem a crescer novamente. Ele tinha dezoito anos. Então... nunca mais. A banda terminara três meses depois de sua saída, quando Joe deixou os ensaios após quebrar uma perna andando nos patins.
Michael nunca brigou ou teve alguma desavença com Joe ou com Paterson. A vida os distanciou. Cada um havia seguido um caminho e naturalmente Michael seguiria o seu. Anne morrera quando Michael tinha trinta anos. Recebera a notícia de um dos vizinhos que o havia telefonado para saber sobre um antigo clube de esportes que ele frequentava. "Dormindo. Ela se foi enquanto dormia." foi o que o homem dissera a Michael.
E agora Michael pensava em como sua vida teria mudado se tivesse seguido com Os destruidores de Petros. Talvez não tivesse tão triste naquela tarde de 1984 quando lembrou dos amigos, o que o havia encorajado a subir os degraus daquela igreja e despejar toda a angústia que sentia. Talvez não tivesse os dois filhos maravilhosos que tinha. Talvez não conhecesse quem realmente o fazia feliz.
Mandy.
Era esse o nome dela. Sua vida tinha mudado em tudo e ela era em parte a responsável por aquilo. Da música a arte de estátua-viva.
Os destruidores de Petros.
Michael sabia que ao contrário das histórias que a velha contava, um gigante cruel é que tinha destruído os meninos.
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O Amor É Cinza
RomanceJack Field é um jovem de vinte anos que é reservado à família e não pensa duas vezes quando quer ajudá-la em qualquer coisa. O emprego de artista de rua não está rendendo, porém a persistência de que um dia tudo será melhor o torna focado em seus ob...