Minha vida deu mais uma guinada quando conheci Alice. Não digo que foi incomum encontrar com ela, porque as circunstâncias ajudavam, eu era médica fazendo especialização em neurocirurgia e ela uma paciente, o incomum era a personalidade de Alice.
Vou descrever um pouco Alice, os cabelos eram raspados, mas dava pra ver a penugem ruiva que teimava em crescer, tinha olhos azuis enormes e as típicas sardas de quem costuma ser ruiva, apesar de toda dor e problemas ela era as vezes voluntariosa, mas também extremamente meiga, tinha um tumor no cérebro e 10 anos de idade.
Antes que você me taxe como uma pedófila ou pervertida, quero explicar que meu amor por Alice não tinha nada de sexual, ela era aquele tipo de pessoa tão carismática que não tinha como resistir, você simplesmente se encantava por ela, tinha vontade de colocar ela num chaverinho e ter sempre por perto.
A primeira vez que a vi foi na ala de pediatria do hospital onde fazia minhas aulas/consultas, estava ajudando meu professor nas visitas com mais dois colegas. Assim que entramos no quarto, Alice já abriu aquele sorriso irresistível que tinha capacidade de me fazer sorrir também, pena que naquele dia havia sido difícil sorrir enquanto ouvia a conversa.
Era um momento tenso, enquanto ela brincava tranquilamente dentro do quarto, ali fora a conversa que se desenrolava ficou por muito tempo em minha mente. Meu professor conversava com a mãe dela.
___ Podemos tentar uma cirurgia, isso daria um tempo extra de vida a ela, talvez um ano ou dois mas pode ter sequelas.
__ Que tipo de sequelas?
___ Pode ficar cega ou surda ou talvez até perder parte dos movimentos , como andar ou mover os braços.
___ E sem a cirurgia?
___ Ela viveria só mais seis meses.
Fiquei tentando imaginar o dilema que aquela mãe sofria, deixar a filha viver só mais seis meses, mas com as funções funcionando ou se arriscar em uma cirurgia que podia deixar a filha sendo um vegetal, mas com a chance de ter mais anos de vida.
Eu não tinha menor ideia do que faria nessa situação. Me peguei naquelea duvida: Até onde um médico deve ir para salvar a vida de um paciente? Quando um paciente com doença terminal deixa de viver para só sobreviver é humano deixar ele partir? Eu não tinha respostas para isso, minha função era tentar salvar vidas, mas não sabia ainda qual seria meu limite. Mas no caso de Alice eu sabia qual resposta daria e foi a mesma que a mãe deu.
___ Não vou submeter minha filha a toda dor de uma cirurgia que não servirá para nada, quero que os últimos dias dela sejam felizes.
Pensava assim também, Alice deveria ter dias felizes e eu ajudaria nisso.
A família de Alice era carente e não tinha condições de alugar tudo que ela precisava para poder ficar em casa, por isso estava ali internada. Ela tomava um remédio via intravenosa que era controlado por uma maquina, também precisava de uma cama hospitalar porque as vezes se sentia tão fraca que não conseguia levantar e cama poderia deixa-la sentada, era preciso também cadeira de rodas e uma cadeira de banho e mais os remédios.
Com o dinheiro que recebia todo mês eu não teria como pagar tudo, mas telefonei para meu pai e para tio Klaus pedindo ajuda financeira e tive uma enorme e inesperada surpresa.
Tio Klaus disse que não devia me envolver emocionalmente com nenhum paciente, e se recusou a ajudar, confesso que não esperava isso dele, um pouco daquela aura de herói que imaginava nele se quebrou nesse dia. Então meu pai me surpreendeu, disse que pagaria tudo pelo tempo que fosse preciso e me elogiou, falou que era um gesto bonito.
E foi assim que Alice conseguiu ir para casa. Ela tinha um irmão mais novo que não via as vários meses, pois não podia sair do hospital e ele não podia entrar, dentro das suas limitações ele era seu companheiro em todas as aventuras.
Eu fazia o possível para tentar vê-la todos os dias, mas nem sempre conseguia, sempre que ela estava bem e o clima ameno saímos de carro, eu ela e irmão para uma volta nem que fosse só pelo bairro.
Não sei se ela se dava conta da gravidade da situação, mas em nenhum momento ela perdia aquele sorriso que encantava as pessoas, nem aquela personalidade forte e eu me desdobrava para fazer ela feliz no pouco tempo restava eu não conseguia recusar nenhum pedido seu.
Adorava brincar, mas particularmente ela adorava tudo relacionado desenhar, lápis, tintas, giz de cera, aquarelas. Um dia seu irmão havia deixado cair a caixa com o giz de cera e todos se quebraram, como ela tinha ficado muito triste com aquilo, prometi que compraria outra e foi exatamente na hora que eu estava em uma papelaria pagando o giz que meu celular tocou. Era a mãe de Alice.
Ela havia sido internada as pressas depois de ter passado mal e desmaiado. Corri na mesma hora para o hospital, assim que entrei no quarto eu já sabia o que estava por vir, era o fim.
Senti que não teria forças para ficar nem um minuto ali sem chorar, mas vi que a mãe dela se mantinha forte, não sei como conseguia, mas era meu dever conseguir também. Quando cheguei perto da cama ela me deu um sorriso fraco, estava com uma mascara de oxigênio no rosto e respirava com dificuldade.
___ Oi tia Gi, trouxe meu giz de cera?
___ Imagina se eu ia esquecer do seu giz. Está aqui na minha bolsa Alli.
___ Pode me dar?
Tirei a caixinha de giz de cera com as mãos tremulas, entreguei para ela.
___ Vou colocar na mesa, amanhã faço um desenho e te dou. Agora eu tô com sono.
___ Tudo bem meu anjo, descansa.
Poucos minutos depois ela dormia profundamente, sentei em uma cadeira, e fiz o possível para não chorar, acabei caindo no sono e então acordei assustada com o bipe estrondoso das maquinas, enfermeiros e médicos entrando correndo no quarto, a mãe de Alice chorando. Ninguém me tirou do quarto, ninguém me pediu para sair, eu fiquei ali parada vendo Alice dar seu ultimo suspiro, então eu sai, não via nada na minha frente, nem sei dizer como consegui dirigir até o apartamento onde morava.
Entrei no meu quarto, me joguei na cama e chorei como nunca havia chorado antes em toda a minha vida.Mas agora eu tinha um rumo, a curta vida Alice tinha feito isso por mim, me dado um norte, me devolvido a paixão por viver e por querer ajudar os outros.
Hoje quando lembro de Alice, imagino a mulher linda que ela teria se tornado, linda e forte, não serve como consolo, mas é uma forma de honrar sua memória e é assim que resolvi pensar nela.
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Uma mente sem lembranças
General FictionO que você faria se todas as suas lembranças fossem apagadas? Meu nome é Giulia Schneider, minha vida sempre foi cheia de reviravoltas, mas nenhuma tão radical como quando, conheci Wendy Alba ou quando a matei. Se tiver paciência para me acompanhar...