Incêndio No Quarto

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      Quando criança, eu era aquela garotinha fofa e com bochechas rosadinhas, meus cabelos eram tão loiros que pareciam platinados, pele clara demais e olhos azuis, não que eu tenha mudado muito desde então, não sou mais fofinha e meus cabelos já não são tão claros, apesar de ainda serem bem loiros, como descendente de alemães, o biotipo familiar era todo assim, as pessoas na rua me achavam uma gracinha,  apertavam meu rosto e me elogiavam, pena que no colégio isso não se repetia, fui tantas vezes chamada de verme de goiaba que acabei não me importando mais.

      Confesso que fui uma criança bem mimada, sendo a única filha do casal, Thereza e Josef Schneider, e também a única neta mulher no meio de tantos netos garotos, era só eu desejar alguma coisa e logo alguém trazia,fazia ou mandava comprar. Lógico que isso nos meus primeiros anos de vida era uma maravilha, então comecei a me dar conta que não poderia ser como meus primos, não podia ter a mesma liberdade que eles.

     Geralmente haviam festas na chácara dos meus avós paternos, meus primos brincavam com bola, na terra, na grama, soltavam pipas, eu tinha que ficar olhando, toda vez que tentava ir  brincar junto com eles, minha mãe ou minha avó me faziam sentar e diziam que aquilo era brincadeira de meninos.

__ Giulia, meu bem, você não vai querer sujar seu vestidinho novo, né?!

     Siiim, eu queria desesperadamente sujar meu vestidinho novo, na verdade eu queria rasgar ele, arrancar, jogar no lixo, mas eu era a princesinha da família, eu precisava viver ali dentro da redoma de vidro que haviam me imposto.

    Meu quarto era todo rosa, eu tinha tantas bonecas que daria facilmente para montar uma loja, não que detestasse bonecas, mas eu queria algo além, queria ter liberdade de colocar um velho short e correr com meus primos, me jogar na grama, ser tão livre quanto eles.

    Aos seis anos de idade eu já era uma criança bem revoltada, provavelmente já era feminista sem nem ao menos saber o que isso significava. Igualdade já!

   Em meu quarto havia uma cortina rosa que eu particularmente detestava mais que todo resto, como já era de se esperar, toda cheia de babados e rendinhas rosa e branca, aquela cortina me causava ojeriza, era o horror, então decidi que iria colocar fogo nela.

     Fui até a cozinha e discretamente consegui uma caixa de fósforos, voltei até meu quarto, fechei a porta, e peguei a caixa, essa foi a primeira vez que senti a adrenalina e a emoção correndo pelo meu corpo, é como dizem, o proibido é sempre mais gostoso.

     Minha intenção era incendiar somente aquela cortina horrorosa, só que a coisa não saiu bem como eu imaginava e quando me dei conta o fogo já tinha pulado para a casa de bonecas ( que por azar era de madeira) e depois foi se espalhando para o resto do quarto, meu instinto de sobrevivência gritou:" correi dai sua burra!!!". foi exatamente o que eu fiz, dei no pé, corri para mais longe que podia, não avisei ninguém, eu era a princesinha da família, mas não era imune a palmadas.

     Fiquei escondida nos fundos do quintal por nem sei quanto tempo, pareciam horas, ouvi  vozes gritando, alguém me chamando, mas naquele momento eu estava assustada demais com o que tinha aprontado, não daria as caras assim tão fácil.

     Por fim acabei me cansado de ficar sentada ali no chão, se fosse para levar uns tapas, então vamos lá, uma hora sempre parava de doer.

      Caminhei devagar como quem caminha para o cadafalso, mas estranhamente quando minha mãe me viu veio correndo ao meu encontro e me abraçou. Não entendi muito bem a atitude dela na hora, só depois que ela começou a falar é que me dei conta.

___Meu Deus Giulia, você esta bem? Seu quarto pegou fogo, fiquei com tanto medo que estivesse lá dentro.

___Eu tô bem mamãe.

___Agora eu sei meu amor, não vamos mais colocar aquelas cortinas, parecem que elas pegam fogo com muita facilidade.

     Caramba, além de sair impune daquela confusão toda eu ainda não precisaria mais olhar para aquelas cortinas medonhas. Eu estava feliz, mas ao mesmo tempo tinha algo me incomodando, sabe aquela voz chata na cabeça que te diz que isso não foi nada certo. Pois é, consciência é como um cachorro que você encontra na rua, ele até pode te deixar passar, mas você não pode impedir que ele fique ali latindo. Então essa voz me perseguiu por um bom tempo e eu decidi que por menos que eu gostasse de algo, era bem melhor eu não tacar fogo.

     Ganhei um quarto todo reformado, mas ainda assim rosa, ganhei bonecas, mas não tanta quanto antes, e tive que aceitar que pelo menos por enquanto esse excesso de rosa faria parte da minha vida, gostando ou não eu teria que conviver com isso ai.

   Bem, como pode ver, uma infância tranquila e normal.



Uma mente sem lembrançasOnde histórias criam vida. Descubra agora