Minhas Cicatrizes

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Nos dias que se seguiram, ficou bastante claro que minha convivência com Ivana seria impossível, primeiro ela riscou meu carro e quebrou o espelho retrovisor, só isso já seria um bom motivo para demiti-la, mas como ela era também secretária de meu tio, achei melhor não fazer nada por enquanto, depois vieram as pequenas provocações, odeio café muito forte ela sabia disso e fazia um café tipo veneno de tão amargo, odeio que tirem minhas coisas do lugar, tenho tudo organizado da forma que gosto e ela ia até minha mesa e tirava exatamente tudo do lugar, eu chegava e ter treco de nervoso quando entrava na minha sala, cheiro de baunilha me deixa enjoada e então ela fez questão de comprar um aromatizador de ambiente com cheiro de baunilha, eu passava a manhã todo com dor de cabeça por isso, fora as alfinetadas que ela me dava quando era preciso falar comigo. O clima era insuportável, porque também passei a devolver suas alfinetadas.

Conversei com tio Klaus assim que ele voltou da Alemanha, disse que não estávamos mais juntas, o que o deixou meio chateado, ele era fã de Ivana, ainda acrescentei que já tinha outra pessoa,e ele já se adiantou dizendo que queria conhecer Wendy.

Meu tio conversou com Ivana, tentando fazer o clima ali ficar mais suave, não resolveu e ela se demitiu uns dias depois, quando notou que suas provocações já não estavam mais me afetando tanto quanto ela desejava. Tio Klaus me fez um longo sermão dizendo que havíamos perdido uma secretaria ótima e blá blá blá, mas chamamos a sua substituta nas férias e pelo menos isso ficou bem.

As coisas com Wendy estavam indo tão bem, vivíamos aquela fase meio lua de mel onde tudo e maravilhoso e não se tem vontade de ficar longe da pessoa por nada no mundo, passava meus finais de semana junto a ela, ou na sua casa ou no meu apartamento. Ela ainda era bem misteriosa e fechada por isso estranhei quando me contou algo sobre seu passado.

Estávamos no seu quarto, deitadas na cama, enquanto eu passava a mão pela tatuagem que ela tinha nas costas, ela se vira ficando de frente para mim.

___ Ganhei essa cicatriz quando tinha 16 anos, ainda lá no Pará.

___ Wendy, não precisa me contar se isso te faz mal.

___ Quero contar Giu. Pelo menos isso.

Fiquei esperando ela contar o que havia feito um estrago tão grande em suas costas, demorou um pouco até ela voltar a falar, achei até que tinha mudado de ideia sobre me contar aquilo.

___ Eu morava com minha família na zona rural de Marabá, não era um sitio muito grande, mas dava para nossa subsistência,meu pai fazia queijos e minha mãe cuidava de uma granja e vendia os ovos e algumas galinhas, eu e meu irmão desde bem cedo ajudávamos nisso, não era muita coisa, mas era uma vida simples e agradável, sinto saudade disso.

___Sua família ainda mora lá?

___ Eu não tenho mais ninguém, já te disse isso tanta vezes. Posso continuar?

___ Claro.

___ Eu ia na escola pela manhã e passava o resto do dia ajudando no sitio. Em um sitio ao lado do nosso morava outra família, éramos todos amigos, eu tinha um namorico com o filho deles, nada muito sério, só aquela coisa de adolescentes.

___ Foi ele que fez essa cicatriz nas suas costas?

___ Vai me deixar contar ou não?

Fiquei quieta, eu tinha essa mania chata de fazer perguntas quando a pessoa ainda estava no começo do que tinha para dizer, não falei mais nada, só esperei ela terminar.

___ Desculpa. To calada.

___ Ali na região tinha um cara muito rico e poderoso, dono de terras e mais terras o povo chamava ele de Marreta, diziam que já havia torturado e até matado pessoas com um marreta pintada de vermelho, ele vivia insistindo para que meu pai e o outro senhor vendesse tudo para ele, um cara influente e também perigoso, as pessoas temiam ele. Certa vez eu cheguei da escola e ele estava falando com meu pai, não era preciso ser muito esperta para ver o jeito que me olhou, me senti desejada e aquilo me atraiu, afinal ele tinha aquela aura de poder. Eu sabia que ele era casado e saia com muitas mulheres, não estranhei quando no dia seguinte ele me esperava na saída da escola. Não vou estender muito o começo disso que você já deve imaginar, me deixei levar, me envolvi com ele, foi o primeiro homem da minha vida, eu não o amava, mas me sentia importante por ele me querer. Não vai me criticar por ter me envolvido com um homem casado?

___ Eu não julgo Wendy, já fiz muita merda na vida também.

___ Fiquei um bom tempo com ele, um dia porém perdi a van escolar que me levava em casa, teria que ir a pé, o que era uma longa caminhada, então um amigo de colégio se ofereceu para me levar de moto, no meio do caminho cruzamos com o Marreta, não achei que estivesse fazendo nada errado ele tinha varias mulheres não poderia me cobrar nada, mas vi o olhar que me lançou, com ódio. No dia seguinte me mandou um recado dizendo que era para encontra-lo no galpão que era um lugar onde sempre ia ficar com ele, um barracão grande com um portão de ferro alto e enferrujado.

A historia prendia cada vez mais minha atenção, e sentia vontade de apressar para saber logo o que tinha acontecido, mas deixei Wendy tomar coragem para contar o resto, eu via o quanto aquilo era penoso para ela lembrar e falar.

___ Pensei em não ir, já estava cansada daquela relação, o que eu sentia nos primeiros dias já havia passado, mas ninguém dispensava o Marreta e como vim a perceber depois, ninguém também o traia sem sair bem machucado. Tivemos uma briga, ele me chamou de vadia, e começou e me bater, tentei fugir, mas ele me segurava com muita força, e o portão do galpão estava trancado, por sorte ele se desequilibrou, foi quando corri e tentei passar por baixo do portão, havia o vão ali, minhas costas arderam quando consegui me arrastar por baixo, mas no momento eu estava com tanto medo que nem notei, só quando cheguei em casa me dei conta do estrago, eu tinha um enorme corte nas costas e não havia modo de esconder da minha família o que tinha acontecido. Meus pais me olharam com desprezo quando contei tudo, mas ainda assim tentaram me proteger dele.

___ Caramba Wendy, e depois? Foi até a policia?

___ Não, até a policia tinha medo dele ou eram comprados. É só isso que posso te contar. Não quero falar sobre o resto. Mas me envolver com esse homem acabou com minha vida.

Eu a abracei e fiquei assim um tempo se dizer nada, ela tremia e chorava baixinho e sentia uma vontade tão grande de tirar sua dor, mas não podia, isso ela levaria por toda a vida. ninguém esquece uma coisa dessas.

___ Nunca contei isso à ninguém.

___ Obrigada por me contar.

Por incrível que pareça, nesse dia, eu amei ainda mais Wendy.




Uma mente sem lembrançasOnde histórias criam vida. Descubra agora