Capítulo dezesseis - Obstáculo inesperado (Parte 6)

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                Foi bem diante de Shermmie que o youkai voador desceu, parecendo ignorar completamente a presença de outro guardião ali. Os dois se encararam por algum tempo, como se analisassem minunciosamente um ao outro. Na verdade, era exatamente o que a leonina fazia.

Ele era alto – bem mais do que ela – e tinha a aparência humana de um homem na faixa dos trinta anos. A armadura, semelhante à dos outros generais, ainda deixava à mostra o formato definido do peitoral e dos braços. Ele tinha a pele negra e intensos olhos escuros. A única característica não-humana era o fato de ele possuir um grande par de asas nas costas. Também trazia uma lança na mão direita.

Ele enfim quebrou o silêncio.

— Meu nome é Tori, sou um dos generais do exército de Cyane. Não temos que lutar, caso você concorde em me acompanhar até a barreira e retornar para o seu mundo.

Ela não respondeu. Continuou a encará-lo, medindo-o minunciosamente de cima a baixo, de um jeito que o general logo entendeu como uma provocação. Mas ele manteve a calma e repetiu a proposta:

— Concorda em me acompanhar até a barreira e dar um fim a isso?

Novamente, o silêncio. Tenso, Eric decidiu se intrometer:

— Ei, Shermmie... Acho que ele quer uma resposta.

Ela finalmente se manifestou. Mas não disse exatamente o que eles esperavam ouvir.

— Hein?

— Responde, Shermmie!

— O quê?

— O cara de asas tá esperando.

Ela sacudiu a cabeça, forçando-se a voltar seu foco à realidade.

E a realidade é que tinha um youkai com corpo de deus e olhos sedutores bem diante dela!

Essa foi a vez de Shermmie sentir como se a aliança exercesse pressão ao redor de seu dedo. Bufou, amaldiçoando a própria consciência.

— Duvido que aquele canalha do meu marido também não flertou com alguma youkai por aqui!

Dessa vez, não era apenas Eric que estava confuso. Tori também não compreendia as frases desconexas ditas por aquela guardiã. Por isso, insistiu em sua abordagem:

— E então, Guardiã, vai ou não me acompanhar até a barreira?

— Então, foi mal. Preciso ir até o castelo... embora não faça ideia de como farei isso com esse abismo aí na frente.

— Com ou sem abismo, lamento informar que não a deixarei seguir com vida.

— Isso é o que nós vamos ver, bonitão.

Ela apanhou uma de suas estrelas-ninja e atirou contra ele. Tori saltou rapidamente e voou até Shermmie, com a lança em punho. Shermmie conseguiu agarrar o cabo da lança antes que a ponta afiada a atingisse e tentou arrancá-la do oponente, mas este a puxou de volta, tornando a atacar. Ela conseguiu se desviar e cerrou o punho, indo com ele de encontro ao rosto do youkai e conseguindo atingi-lo. Ia acertá-lo novamente, mas Tori voltou a levantar voo. Shermmie concentrou sua energia e mirou diretamente em uma das asas. Quando o atingiu e o viu descer com velocidade, ficou em dúvida sobre se o tinha atingido ou não. Ele caiu de pé e voltou a correr em direção a ela. A lança estava a pouco mais de um metro de atingi-la, quando ele se viu obrigado a saltar de volta para trás, pois quase foi atingido por um disparo de energia branca. Dessa vez, ele foi além do abismo, respirando pesadamente. O golpe o tinha atingido de raspão.

Após o tiro de energia, Eric correu para junto de Shermmie, se posicionando à sua frente, com seu bastão em mãos. No entanto, a brasileira foi para a frente dele, encarando-o de forma nada amigável.

— O que você está fazendo? — Ela parecia furiosa, o que deixou o pisciano intrigado.

— Te ajudando com o youkai-passarozão.

— Me responda uma coisa: eu me meti na sua luta? Não, não me meti!

— Porque não conseguiu, mas tentou.

— Tentar me meter e efetivamente me meter são duas coisas bem diferente. Agora fique fora disso, porque esse bonitão aí é meu!

— Hein?

— O que você ouviu: esse youkai aí é meu.

— Ah, achei que tivesse ouvido outra coisa.

— Não ouviu nenhuma outra coisa. — Shermmie voltou a se virar, ficando de frente para Tori, que voltava a avançar em sua direção. — Sai daqui que essa luta é minha!

Eric atendeu ao pedido, embora não visse muito sentido nisso. Em sua mente, tudo seria bem mais simples se ela o deixasse ajudar. Oras, dois guardiões eram mais fortes do que um sozinho, não? Porém, quando Tori retornou e a luta reiniciou, ele pareceu compreender o que acontecia: Shermmie gostava de lutar. Ela parecia feliz a cada soco dado, a cada vez que conseguia esquivar-se ou mesmo quando era atingida. Parecia movida à adrenalina e alimentada pela sensação de liberdade que uma verdadeira batalha trazia. Aquilo era algo admirável de se ver, sem dúvidas. Embora Eric não achasse nada encorajador ver a trilha de sangue que surgiu do supercilio esquerdo dela, que se abriu em um soco que recebera.

No entanto, até mesmo o cheiro do próprio sangue era um combustível a mais para a leonina. Para ela, era como se não existisse dor, nem tempo, nem mais nada que pudesse ser mais importante do que aquele momento.

Para Tori, no entanto, lutas eram pautadas em obrigações. Fora encontrado ainda criança por Cyane, que se mostrou admirada por seu poder de voar, bem como com o porte físico e a desenvoltura para lutas que fora adquirindo com a entrada na idade adulta. Os pais dele tinham morrido em decorrência de confrontos civis ocorridos ainda durante o governo de Kuro, e Cyane ordenara a seus soldados que o acolhessem e cuidassem dele. Tori seria eternamente grato por aquilo e sabia que a única forma de demonstrar sua gratidão seria sempre lutando por sua rainha.

Foi com essa motivação que ele golpeou a oponente com sua lança. Ela tentou desviar, e conseguiu escapar de ser ferida em algum órgão vital, mas não pôde evitar que a lâmina perfurasse o seu braço direito. Aquilo deveria ser o suficiente para desnorteá-la em consequência da dor, mas Shermmie sequer pareceu sentir que tinha sido atingida. O contra-ataque foi tão rápido quanto mortal: o disparo de uma rajada de energia dourada atingiu o peito do youkai, arremessando-o no chão.

Enquanto ele agonizava, Shermmie enfim sentiu a dor. Cobriu o ferimento com a mão esquerda, ao mesmo tempo em que caía de joelhos no chão. Eric correu até ela, abaixando-se à sua frente.

— Ei, Shermmie, tá tudo bem?

Ela o olhou e sorriu, embora ainda tivesse dificuldade para respirar e o braço ainda doesse bastante.

— Eu mandei bem, não foi?

Ele também sorriu, aliviado ao ver que ela estava bem.

— Mandou benzaço.

— É, eu sei. Agora vamos logo. Não sabemos por quanto tempo teremos que andar até conseguir contornar esse buraco.

Eles ouviram gargalhadas e se voltaram para o youkai que ainda se desintegrava, lentamente.

— Não existe nenhuma passagem para o outro lado. Eu destruí a única que existia, para garantir que vocês não chegarão ao castelo. Se forem tentar contornar, levarão semanas até conseguirem chegar ao cast... — a voz dele desapareceu juntamente com o seu corpo.

Os dois guardiões se entreolharam, dividindo as mesmas dúvidas e preocupações sobre o que fariam a partir daquele momento.

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Guardians II - MetamorfoseOnde histórias criam vida. Descubra agora