Capítulo dezenove - O passado que deixei para trás (Parte 6)

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                Aquela era mais uma das vezes em que Maire deixava sua própria segurança em segundo plano. Mesmo em meio a um verdadeiro campo de batalha, ela correu até Micaela e, enquanto fazia isso, parecia que eram apenas elas duas ali, além do bebê que carregava nos braços. Porém, um verdadeiro inferno ocorria ao seu redor. Mei e Henrique a seguiram e cercaram as duas guardiãs, tendo que enfrentar diretamente os youkais que tentavam se aproximar. Segurando Enzo, Maire se abaixou ao lado da esposa e, com as mãos trêmulas, tocou o rosto pálido e inerte, que ainda estava bem quente. Foi em pânico que ela desceu lentamente a mão até o pescoço para sentir a pulsação. E foi um alívio surreal perceber que Micaela estava viva. Só então, conseguiu respirar profundamente, sentindo uma urgência de ar em seus pulmões, e tomar alguma atitude. Colocou o bebê no chão, no espaço entre o braço e o tronco de Micaela, e, com as mãos livres, analisou o ferimento. A lança ainda estava ali, atravessando o corpo dela e Maire avaliou seu percurso, tentando concluir se seria seguro arrancá-la. Não seria. Aquilo precisava ser feito em um procedimento cirúrgico, em um hospital, o mais rápido possível. Por isso, apenas quebrou um pedaço da lança que saía pelas costas de Mic, sentindo as mãos tremerem intensamente enquanto fazia isso. Tentou convencer a si mesma das chances de tudo acabar bem, de nenhum órgão vital ter sido atingido e da capacidade de recuperação de Micaela, novamente, vir a funcionar bem. Já pensava em como faria para apanhar Micaela e Enzo e conseguir tirá-los dali quando viu alguém se abaixar ao seu lado, começando a erguer o corpo de Micaela num misto de cuidado e pressa. Só então, viu que era Marco. Olhou ao redor, vendo Sofie derrotar o último dos youkais e, junto a Henrique, também se aproximar, aflita.

Maire voltou a pegar o bebê e, sem que nenhuma palavra fosse dita, correu ao lado de Marco, fazendo a trilha que ia da praia deserta até o local onde os carros estavam estacionados. O caminho levou alguns minutos que, para a ruiva, pareciam se arrastar, como se fossem horas.

Quando chegaram ao veículo, Maire foi no banco de trás, segurando o bebê com um dos braços enquanto o outro acomodava o tronco de Micaela.

— Ei, Mic... Eu não voltei da morte para perder você dessa forma.

Maire nunca saberia se fora uma mera impressão sua ou se tinha, de fato, percebido neste momento um leve movimento de pálpebras de Micaela, como se ouvisse o que era dito e quisesse responder algo.

*****

Ryan tinha a sensação de estar como um rato correndo na rodinha de uma gaiola. Deixara que Anne o guiasse e passavam de um corredor a outro, todos exatamente iguais, dando-lhe a impressão de estar passando contínuas vezes pelo mesmo lugar. Em alguns momentos, Anne parava diante de alguma bifurcação, olhando atenta para os dois lados até se decidir por um deles, tentando confiar na memória das poucas vezes em que transitara livremente por ali. Até que, finalmente, viram-se em um ambiente novo. Era um gigantesco salão, onde tinha uma escadaria que levava ao andar de cima. Eles já iam começar a subir quando travaram ao ouvir uma voz infantil que fez o coração de ambos acelerar:

— Mamãe! Papai!

Eles voltaram seus olhos para o alto do mezanino e a visão que tiveram fez o coração de ambos acelerar ainda mais. A pequena Catherine os olhava lá de cima num misto de medo e alívio. Estava com o rosto suado e abatido e tinha as mãos sujas de sangue. Os dois iniciaram uma corrida desesperada escada acima, ao mesmo tempo em que a menina descia, encontrando-os no meio dos degraus e sendo recebida por um abraço aflito de ambos.

— Eu sabia que viriam! — ela exclamou em meio ao choro intenso.

Anne se afastou um pouco, acolhendo o rosto da filha com as mãos trêmulas enquanto fazia uma inspeção minuciosa de cada novo arranhão, das olheiras, do peso reduzido, sentindo a dor sufocante em seu peito aumentar ainda mais ao pensar nos horrores que a filha vivera naqueles últimos dias. Queria lhe pedir perdão por ter permitido que a levassem, por ter demorado tanto tempo até ir resgatá-la, mas a voz travou em sua garganta, sufocada pelo choro de aflição e alívio.

Foi a menina quem falou, em meio às lágrimas:

— Ela... A Cyane saiu do corpo dela... era um monstro horrível! Não sei o que queria fazer comigo, mas eu consegui fugir.

Ryan voltou a abraçar a filha, numa tentativa de tranquilizá-la, embora ele próprio sentisse seu corpo inteiro tremer.

— Ninguém te fará mal algum, meu amor. Nós estamos aqui para te proteger.

Catherine assentiu, aflita. Olhou para a mãe e esticou o braço, num pedido silencioso para que ela também os abraçasse. Anne assim o fez, acolhendo e sendo acolhida pelos braços do marido e da filha.

Nenhum dos dois pôde ver quando, em meio às lágrimas, um sorriso maligno surgiu no rosto de Catherine.

*****

Guardians II - MetamorfoseOnde histórias criam vida. Descubra agora