Capítulo 1 A livreira

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Um sebo decadente, com poucas condições de guardar como se deve um bom livro; nem mesmo os ruins mereciam tal destino. Manchas de diversos formatos se espalhavam pelas paredes da loja de 60 metros quadrados, localizada em uma das poucas ruas arborizadas perto de uma estação de metrô de uma das maiores metrópoles já formadas.

Nem todos os borrões nas paredes do estabelecimento eram tão abstratos, como um que estava na parede ao lado da de autoajuda e se parecia com um bule de chá. Já outro, que ficava perto da de literatura nacional, assemelhava-se a uma xícara, caso fosse olhado com muita atenção, o que ninguém fazia, com exceção da vendedora do lugar.

Apesar do mofo e da máquina registradora quase inútil, que nada ajudavam a diminuir a aparência avelhantada do local, Lisa Dias adorava trabalhar no sebo. Não que recebesse muito por isso, , o salário era irrisório, mas o problema era que ela era apaixonada por livros, precisava estar rodeada deles.

O espaço era religiosamente aberto às oito horas da manhã para então ser fechado às dezessete horas. Mas, pela primeira vez após quase dois anos em que Lisa trabalhava no local, a porta de metal sanfonada, pichada com tinta preta, abriria quinze minutos depois do horário, até então seguido à risca.

O sebo teve sua porta escancarada naquela manhã de fina garoa; o passo seguinte seria Lisa acender o interruptor e trazer luz ao espaço. Mas ela apenas foi capaz de evitar cair em um choro sentido. Sua avó Rose, mãe de seu pai, tinha simplesmente partido, para sempre.

O enterro havia sido no final da tarde do dia anterior, e Lisa não se lembrava de ter sentido tanta tristeza e desespero. O atestado de óbito estava enrolado dentro de sua bolsa para ser entregue ao dono do sebo, seu chefe, o senhor Jonas.

Ver a tampa do caixão abaixando e levando a última visão do rosto tão conhecido e gentil de sua avó a fez perder o fôlego um par de vezes. Lembrou-se, mais uma vez, da última conversa que teve pessoalmente com sua avó, há quinze dias.

Na ocasião, a senhora de cabelos grisalhos e jornalista enrolava o dedo indicador em um punhado da franja castanha de Lisa, enquanto se mantinha em pé ao lado da cadeira de ferro brilhante de uma recepção do quinto andar de um dos maiores hospitais paulistas.

— Espero que os resultados dos exames sejam positivos. Tô bem cansada de cheiro de hospital, que acredito ser uma mistura de desinfetante com comida ruim e um toque final de antisséptico.

— Não se preocupe, querida. Tudo vai ficar bem, você tá com uma cara ótima! São apenas exames de rotina. Logo estará saltitante pelas ruas cinzentas de São Paulo, andando naquelas motocas chispando fogo e tomando umas biritas nos bares dessa cidade dos infernos — disse Rose, finalizando a fala com um pigarro.

As duas esperavam Lisa ser chamada para realizar um exame de urina, pedido pela reumatologista Vera, médica responsável pelo tratamento de lúpus, que Lisa vinha enfrentando.

A jovem havia descoberto ter a doença há seis meses, logo após sentir dores fortíssimas nas articulações dos braços e uma mancha com formato de borboleta ter surgido em seu rosto, atingindo o nariz e as duas bochechas.

— Você sabe que eu tenho medo de moto e não gosto tanto assim de bares, principalmente depois que fui aconselhada pela doutora Vera a evitar bebidas — lembrou Lisa, desacreditada com as ideias modernistas de uma senhora que poderia estar cochilando em uma poltrona florida em frente à TV em uma tarde no meio da semana.

— Pois saiba que percebo em você uma pedra bruta, que pode ser lapidada. Eu, na sua idade, era medrosa também, mas, com o tempo, a gente percebe que a vida passa ligeira e, se você não começar a tomar decisões, ela te atropela.

As casas dos 7 escritores (LIVRO COMPLETO!)Onde histórias criam vida. Descubra agora