Capítulo 72 A cidade que não dorme

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Dessa vez, ela não chorava, estranhou que as lágrimas que antes vinham com facilidade não dessem as caras. Estava muito emocionada com as palavras dele, mas uma serenidade tão profunda se instalava em alguma parte dela que, simplesmente, ela conseguia se controlar. 

Foi capaz, sim, de segurar as lágrimas. Sentiu uma paz que há tempos não sentia e uma certeza de que tudo ficaria bem, de que ela faria de tudo pra tudo ir bem, justamente porque agora ela não precisava fazer isso apenas por si mesma, mas por Derek também. 

Ela era importante para ele, e ele sofreria se ela desistisse de lutar, de viver. E ela não faria mais isso. Ao menos, lutaria contra sua tendência autodestrutiva, pessimista. Lutaria, porque tinha alguém para lutar não por ela, mas com ela. 

— Você tá bem calada — disse ele, um pouco desapontado, ela vivia chorando e agora não havia sinais de choro algum. — E aí, topa? — perguntou ele receoso.

— Topo. Pode apostar que topo — disse Lisa, soltando uma risada livre. 

— Achei que ia ter um treco de tanta ansiedade — disse ele, sorrindo e dando um passo à frente e desamarrando o anel brilhante da fita, enquanto ela segurava o livro em suas mãos. Ele, gentilmente, colocou a joia no dedo anelar da mão esquerda dela, curvou-se e deu um beijo nas costas da mesma mão. 

— Oi, noiva — disse serenamente, ainda com a cabeça baixa, levantando apenas os olhos para fitar o rosto dela, acima do dele. 

— Oi, noivo — respondeu Lisa, que agora sorria de forma escancarada. — Nem acredito que vamos começar a escrever a nossa história a partir de agora. 

— Tenho que discordar de você sobre criar uma história a partir de agora. Estamos fazendo isso desde quando você encostou naquela parede do fundo do bistrô, em Paris, e tentou recuperar o fôlego depois de correr desesperada por aquelas ruas de luzes. 

— Também desde que te vi nas sombras, com os braços sobre o peito e um pé apoiado na parede, pronto para me insultar? 

— Isso mesmo. Você buscando luzes e eu sombras. Foi ali que começou a melhor parte da minha vida. 

O livro que estava nas mãos de Lisa foi colocado por Derek no centro da prateleira, no único espaço vago. Depois, ele a levantou da cadeira, enlaçou-a pela cintura e a beijou na clavícula enquanto ela fechava os olhos sem, contudo, desfazer o leve sorriso nos lábios, que logo receberam o peso dos dele. 

O beijo foi para selar um momento que seria lembrado para sempre, mais do que qualquer capítulo de alguma ficção já lida por eles. 

Enquanto o beijo se tornava cada vez mais intenso, ocorreu uma leve batida na porta da Casa dos 7 Escritores, ao mesmo tempo em que uma tempestade iniciada há uma hora seguia seu curso avassalador.

O fato não foi absorvido por eles, que davam vazão aos seus sentimentos. O pequeno acidente ocorreu quando um gato malhado esbarrou na porta de metal do local. 

O animal havia se lançado na porta assim que escapou de ser atropelado por um carro de luxo de pintura metálica que vinha de forma imprudente em alta velocidade, repleto de jovens que seguiam para uma festa. 

Segundos depois de quase ter passado por cima de um gato, o carro cruzou a esquina da rua arborizada e lançou água da chuva acumulada no meio-fio, que molhou ainda mais um morador de rua, que por sua vez se dirigia ao seu local de dormir, embaixo do toldo de uma lavanderia. 

Ele não se importou de estar molhado, era o mais perto que chegou de um banho nos últimos quatro dias. O morador de rua assobiou para o seu cachorro vira-lata com pelos emaranhados, que o seguia fielmente pelas ruas de asfalto opaco, que um dia foram de um piche reluzente e grudento. 

A um quilômetro e meio dali, uma viúva via a fotografia antiga do marido falecido, guardada em uma caixa de sapato encapada com papel de presente florido. Mesmo com o passar dos anos, ela ainda suspirava por ele, recordando a sorte de ter encontrado alguém que a tratava com paixão rara. 

No restaurante que ficava a cinco quarteirões do apartamento da viúva, um freguês gritava com um garçom porque o seu cartão de crédito não havia passado. Ele só não contou que gastava mais do que ganhava e vivia uma vida de pequenos luxos que não podia pagar, mas se enganava ao supor que gritar o faria se sentir menos humilhado. 

Parado no farol a dois minutos de distância a pé desse restaurante, um casal brigava dentro do carro parado, enquanto um bebê chorava na cadeirinha de trás. A sogra havia insinuado que a nora não cuidava bem da criança. 

Um rato atravessou a frente desse carro e se lançou dentro de um bueiro. Depois de mais de meia hora nos esgotos fétidos da cidade, o rato voltava para a superfície. Dessa vez, saltou para uma rua larga, que tinha uma loja de livros velhos recém-reformada, com a porta pichada, que, há menos de uma hora, um gato havia esbarrado.

E, dentro dessa loja, uma história corria para o próximo capítulo e o desejo ficou pequeno para descrever o que acontecia com um casal que havia acabado de noivar. E o barulho das risadas e dos beijos saídos daquele lugar, misturado ao cheiro de livros velhos e essência de baunilha de uma sobremesa com nome de personagem literário, provava que aquela cidade ainda estava acordada. 

Essa cidade é conhecida por sua fina garoa, mas também apresenta tempestades que reverberam o barulho de trovões e recebem as luzes dos raios sobre os arranha-céus. É uma cidade que não dorme e não deixa dormir.

Fim!

As casas dos 7 escritores (LIVRO COMPLETO!)Onde histórias criam vida. Descubra agora