Capítulo 26 Iásnaia Polyana

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Após ter se despedido de Galina e das outras senhoras, Lisa se dirigiu, enfim, à casa onde Tolstói passou muitos anos de sua vida. Ela atravessou o jardim da casa, parou na frente da residência e tentou absorver cada detalhe, sentir o que representava morar em uma casa tão bela em um local tão isolado. 

Reparou, sem pressa, a casa pintada de branco, com telhado marrom bem claro. Eram muitas janelas, mais de dez só no andar de cima, sendo que algumas davam acesso a uma estreita varanda de madeira. Eram dois andares, mas Lisa desconfiou que talvez a construção tivesse algum porão. 

Embora tivesse percebido quatro chaminés no telhado da casa, parecia que tinha mais um ou dois que ela não conseguia visualizar do ângulo que estava. Imaginou-se morando na casa um século atrás, sendo uma das filhas do escritor ou mesmo uma das camponesas que trabalhavam por ali. Se sentiria entediada ou amaria a vida no campo? 

Um guia recebeu Lisa e mais dez pessoas na primeira sala da construção, as paredes estavam recheadas de livros, todos organizados; Lisa lembrou-se do caos do sebo onde trabalhara no Brasil. Ela descobriu que a casa guardava mais de 20 mil livros, sendo que metade eram escritos em russo, e o restante, em cerca de 40 idiomas diferentes. 

Usando pantufas para entrar no museu, Lisa tinha que tomar cuidado para não escorregar. Teve vontade de sair deslizando, como que patinando, de tanta felicidade por estar ali. Junto com o grupo, subiu as escadas, olhou à esquerda e reparou em um grande relógio antigo, imaginou que o Senhor Jonas iria dar todos os livros do sebo em troca desse relógio. Era lindo, Lisa imaginou que devia ser um carrilhão inglês. 

Do lado oposto do relógio, estava a sala de jantar. Uma mesa retangular com toalha branca e dez cadeiras marrons ao redor. Em uma das paredes estavam pendurados quatro quadros com molduras douradas e um com moldura marrom e detalhe dourado. Dois retratos eram de Tolstói. Outros quadros do cômodo retratavam as filhas e a esposa do russo. 

A sala possuía dois pianos e diversas cadeiras, onde a família e os visitantes geralmente se reuniam, segundo informou o guia que falava em inglês. As paredes e cortinas eram brancas, e o assoalho era de madeira. 

— Definitivamente, um local para um escritor — disse Lisa ao olhar pela janela e ver árvores e, acima das copas, um céu límpido. Observava o quarto pequeno do escritor, ele havia escolhido o cômodo nos últimos anos de vida, quando optou por viver de forma mais modesta do que suas posses podiam possibilitar.

O quarto possuía uma cama de solteiro encostada ao lado esquerdo da parede, uma pequena cômoda e três cadeiras, além de uma mesa de madeira. Havia um guarda-roupa de apenas duas portas. O chão também era de madeira, sem brilho, forrado por alguns tapetes. A simplicidade do quarto destoava dos outros cômodos da casa. 

— Será que foi aqui que ele pensou em fugir, deitado na cama, olhando para o teto e sentindo que este não era mais o seu lugar, se é que um dia o foi? — perguntou-se Lisa em voz alta, imaginando o escritor esgueirando-se pelos cômodos para não ser visto em sua fuga e saindo pela porta da casa para nunca mais voltar. 

Lembrou-se de um artigo sobre um livro, escrito em russo, que tratava dos últimos dias do escritor. Lisa digitou rapidamente no seu celular palavras que a levassem ao artigo que havia lido há alguns meses. Ela vibrou pela internet funcionar por ali. 

— Achei — disse, ao abrir a página e checar que o livro se chamava Fuga do Paraíso, do jornalista russo Pavel Basinski. Segundo o texto, Liev Tolstói havia fugido de madrugada, aos 82 anos, em um dia de novembro de 1910. O ancião era o homem mais famoso do país e, ao pegar trens para fugir, era reconhecido pelas pessoas. A fuga durou dez dias. 

— O ancião de Iásnaia Polyana — disse Lisa, olhando o imenso travesseiro da cama encapado com uma fronha branca. Ela imaginou que nem para fugir o autor devia ter tido paz, afinal, todo mundo conhecia o famoso Tolstói. Ao continuar lendo o artigo, ficou sabendo que o escritor viajava de trem, na terceira classe, onde o frio era mais intenso do que em demais vagões. 

Pegou pneumonia e faleceu, poucos dias após sua fuga, na província de Riazan, dentro da estação ferroviária de Astapovo. Depois de ter visto todo o museu, Lisa se encaminhou para o túmulo de Tolstói, que ficava em um bosque não muito longe da casa central. 

O túmulo era simples, como foi pedido pelo escritor que também havia escolhido o local para ser sepultado bem antes de sua morte. Era uma clareira chamada pelo filho mais velho de Tolstói de "o lugar da varinha verde". O menino dizia que quem encontrasse a varinha verde nunca ficaria doente e morreria. 

E, na clareira, estava o túmulo, um pouco acima do solo, forrado de grama, com árvores ao redor. Tolstói, enfim, pensou Lisa, talvez houvesse conquistado a paz que buscara por toda a vida. 

A brasileira ficou ali, imaginando como uma pessoa, mortal, que havia nascido como qualquer outra, que precisava se alimentar, abrigar-se do frio, que também ficava doente e morria, tinha influenciado tantas pessoas e, hoje, após tanto tempo, ainda era lembrada e admirada.

Agora andava em um caminho rodeado de árvores dos dois lados e imaginou que o trajeto deveria ter de quatro a cinco metros de largura. Comprida, a alameda do portão de Iásnaia Polyana dava na casa do escritor. Lisa estava sozinha. Não via ninguém no caminho. Começou a cantarolar. 

Quando já estava na metade da alameda, saiu da pequena estrada e entrou na área gramada. Em algumas partes, a grama estava alta, mas ela achou um local, perto de uma árvore frondosa, onde a grama estava mais baixa. Sentou-se no chão. 

Encostou as costas no tronco da árvore, esticou as pernas e tirou o livro da bolsa, assim como um suco de laranja enlatado que havia comprado um dia antes em um pequeno mercado. Abriu a lata ruidosamente. Esperou o som cessar e deu um longo gole. 

Olhou ao redor e apurou a audição, o único barulho no local era o do chacoalhar de galhos e o de alguns pássaros mais assanhados que cantavam. Ela, então, abriu o livro que era só o primeiro volume da saga. Sua intenção não era ler tudo, mas devorar algumas partes que mais chamaram a sua atenção.

Logo no início do livro, tinha uma anotação, escrita a lápis, feita há alguns anos. A fala era do príncipe Vassili ao chegar na casa de Ana Pavlovna Scherer. Em questões de segundos, Lisa foi transportada para um tempo que não era o seu, para um país que não era o seu, mas que ela estava nele agora, para uma classe social bem diferente da sua. 

Simplesmente embarcou nas escritas de Liev Tolstói, o homem que tantas vezes andou pelo caminho que Lisa via ao seu lado direito. 

— Chocante — disse Lisa, diante do fato de que nunca havia lido um livro de um escritor em um local onde ele havia morado. 

Classificou essa experiência como uma das mais loucas de sua vida. O sol já havia se posto quando ela se levantou da grama. Guardou o livro na bolsa e voltou para a alameda. Resolveu dar uma última olhada na casa do escritor antes de voltar para o hotel. 

Estava com sono, ler sempre a relaxava muito. Já de frente para a casa, Lisa mentalizou os membros da família se recolhendo para conviverem, jantarem e, enfim, deitarem-se em suas camas. 

Já Tolstói e a esposa conversavam amigavelmente, diferente de tantas vezes em que explodiam um com o outro e se sentiam incompletos e incompreendidos. Dois temperamentos tão diferentes convivendo sob o mesmo teto. 

Os filhos dessa união, numerosos e orgulhosos do pai, entravam primeiro na casa, segundo a imaginação da brasileira. Adentravam pela porta principal, logo seguidos pela mãe Sofia Tolstói. 

E, no final, Tolstói segurava a maçaneta, olhava para a direção onde Lisa estava e, simplesmente, fechava a porta.

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