Capítulo 2 A proteladora nata

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Não teve tempo de Lisa tentar dissuadir sua avó Rose a aceitar a devolução do dinheiro depositado em sua conta, e nem mesmo a apoiá-la na saga que era tentar reconquistar o ex-namorado. Após menos de uma semana da última conversa, ela teve um ataque do coração e faleceu enquanto tentava, sem sucesso, acertar alguns pontos de tricô, sentada em uma cadeira de balanço que ela raramente usava.

Agora Lisa tinha apenas a sensação de vazio e de que deveria fugir de tudo e de todos. Os motivos para a fuga ela já tinha há um bom tempo — um deles era se afastar de Raul, que ao que tudo indicava não tinha nenhuma consideração por ela. Nem mesmo deu as caras no enterro de Rose.

Depois de divagar em recordações, Lisa voltou a ficar ciente de onde estava. Dentro da loja de livros. Pensou em apertar o interruptor e dar visibilidade aos milhares de livros, mas, no último minuto, desistiu de trazer luz ao espaço. Apenas fechou a porta do sebo, ficando no mais completo breu. Após alguns minutos tentando vislumbrar os contornos das prateleiras, finalmente, acendeu as luzes.

Andando pela loja, parou em frente à prateleira de literatura brasileira, passou os olhos pelos títulos e percebeu que havia lido a maioria deles. Percebeu a respiração irregular; fechou os olhos. Quando sentiu que o ar entrava e saía de seu peito de forma mais compassada e calma, ela fez um pedido, de certa maneira curioso, aos livros à sua volta.

— Eu gastei horas da minha vida com o nariz enfiado em vocês. Deixei de sair, de fazer alguma outra coisa para conhecer o que vocês guardavam. Fiquei marcada com suas histórias, a maioria não sai de mim. Vira e mexe lembro-me de seus personagens, das frases de impacto — disse ela andando na direção dos livros de ficção científica. 

— É como se me assombrassem com suas dores, seus momentos de alegria e tudo o mais. Estou cansada de ser a garota que lê. Quero ser a garota que pode inspirar um autor um dia. Assim... Assim como minha avó acreditava que tinha que ser! 

Para Lisa, mergulhar em histórias era, de certa maneira, uma forma de fuga. Preencher com a história dos outros o que faltava em sua própria vida. Era como um bálsamo cheiroso em uma ferida aberta; como tapar um buraco em um cano de água furado, fazendo com que não jorrasse mais água, apenas gotejasse. Mas o gotejo ainda ficava lá, mais perceptível quando o livro terminava. O barulho das gostas crescia, incomodava; lembrava-lhe que o buraco ainda existia e se tornava cada vez mais temido.

— A minha vida não parece que tem um final feliz! — gritou ela na loja vazia. — Não tem as aventuras das páginas desses livros que me arruínam, que me lembram do desinteresse da minha própria vida. — Ela olhou de forma raivosa os livros à sua volta. — Eu estou cansada de vocês! — gritou, soltando um soluço e puxando uma das prateleiras que estava bamba para o chão.

Quando mais de uma centena de livros se espalhou pelo piso desgastado da loja, ela sentiu como se um peso saísse de um de seus ombros. Queria desesperadamente libertar o outro ombro.

— Vocês me fizeram acreditar em mundos que eu nunca vou poder tocar. de não tomar minha vida nas minhas mãos, de ir seguindo sem rumo, sem buscar o melhor, porque eu encontrava o melhor dentre de suas folhas — uma risada curta. — Mas, bem na última página, vocês me excluem de vocês — continuou. — Me fazem sair de seus mundos e voltar para um trabalho sem futuro, para um romance de fracasso. Danem-se vocês! — grunhiu, derrubando a outra prateleira e libertando, assim, o outro ombro de pesos imaginários.

Atravessou a loja, segurou outra prateleira e a puxou, mas, como essa não estava bamba, foi bem mais difícil derrubá-la. Lisa teve que um pé na parede para conseguir reforço para derrubar o móvel, que, ao cair, esbarrou em uma prateleira menor que ficava no centro da loja. Um punhado de livros chegou a cair sobre os pés da livreira.

— Malditos! — disse com a respiração descompassada.

Seus olhos contemplavam a bagunça que havia causado. Quase não dava para ver o piso de madeira, pois este havia recebido um incompreendido tapete literário. Sentiu como se fosse observada e bateu os olhos no peixe betta da cor azul, denominado de Frank Sinatra pelo proprietário do sebo. O animal estava inerte com os olhos fitos nela, ao menos foi o que imaginou.

— Que foi? — perguntou altiva ao peixe. — Nunca viu ninguém perder o juízo? Seu peixe esnobe! — esbravejou.

Logo em seguida, sentiu uma fisgada no braço esquerdo; lembrou-se de que deveria evitar forçar os membros do corpo e, definitivamente, derrubar prateleiras recheadas de não era uma atividade que exigisse pouco empenho.

Sentiu finalmente lágrimas se aproximando para logo pularem de seus olhos e, quando isso aconteceu, ela sentiu o peito se esvaziar. que ela não sabia... Sentou-se no meio da loja, em um pequeno mar de livros, e deu vazão ao choro.

— Por que você precisa ser tão dramática? Um monte de gente no mundo passa por isso, perde alguém que ama — falou para si mesma.

Mas ela sabia que não era só a questão da perda da avó. A fatalidade veio apenas coroar uma velha insatisfação com todo o resto, com suas decisões ou a falta delas. Com seu namoro e a falta de perspectiva no trabalho ou mesmo o que sonhar para o futuro. Ela definitivamente era uma proteladora nata.

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