19. A fuga de Jimin

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Acordei em uma fileira de corpos. Eu estava ao lado dos corpos inertes e frios dos meus companheiros de cela. Mesmo no escuro eu podia reconhecer seus rostos sofridos, que nunca tiveram a oportunidade de sobreviver, como eu. Eles não receberam nenhum tipo de funeral específico, mas estavam postos lado a lado como se quem se despediu daqueles mortos tivesse os deixado esperando a cremação que estava chegando. A imagem deles mortos está gravada na minha mente até hoje e às vezes isso me estimula a viver a vida que eles nunca puderam ter. Mas às vezes, não é o suficiente...

Naquele momento, no entanto, eu não pensava muito. Não me preocupava em saber como estava vivo, eu só queria me manter daquele modo. Os instintos de sobrevivência é que me faziam me levantar e correr para algum lugar seguro. Até porque, o fogo ia se aproximando e me fazendo perceber que eu tinha que ser rápido em sair dali, mesmo que eu não tinha um rumo certo para o qual ir. Corri pelas ruas e vielas mais desertas de Tóquio até me localizar. Eu havia saído da mansão de Sada e agora só pensava em ir até o porto, onde poderia tentar me embrenhar em algum navio rumo à Coréia. Eu não tinha para quem voltar, mas ao menos na minha terra estaria cercado de quem pudesse se solidarizar comigo e me ajudar a sair daquela situação esdrúxula em que minha vida se encontrava. Eu não tinha o dinheiro que tinha tentado pegar de Sada. Mas era só o que me restava. Fugir.

No porto, começando a se movimentar, eu podia me esconder até a hora de minha partida. O próximo navio de volta para a Coréia sairia em algumas horas, ao amanhecer, como escutei as pessoas falando. Eu me escondi atrás de pilhas de mercadoria. Já não sentia mais a exaustão de antes. Procurei pelo ferimento do tiro que havia levado, mas sob a camisa ensanguentada, meu peito estava intacto. Eu podia ver o furo no tecido pelo qual a bala havia passado, a queimadura de pólvora provando que um tiro havia sido dado em quem quer que havia usado aquela camisa antes. Eu poderia ter tido um delírio. Já havia tido algumas visões usando algumas das bebidas e drogas que havia provado. Não duvidava que fosse possível ter uma alucinação tão real, embora eu me recordasse de estar são. Apesar de nunca ter provado algo que me fizesse ver e sentir daquela maneira, aquela parecia ser a alternativa mais provável. Nunca se sabe com que droga eu havia sido envenenado por Sada. Ou talvez seu sangue, que eu havia provado no beijo que ela me dera, causasse um efeito de alucinação ainda maior do que o normal. De qualquer modo, eu estava vivo e forte, mas começava a tremer. Talvez fosse um efeito colateral ou um primeiro sinal de abstinência. Alguns minutos de descanso depois e eu sentia uma fome enorme e suspeitava então de que ainda estivesse sob forte efeito daquela droga. Às vezes eu olhava para os trabalhadores do cais passando com suas cargas nas costas e sentia um desejo enorme de... mordê-los. O cheiro do suor deles, o som de suas vozes, tudo me deixava atento como um animal faminto.

De repente, o cheiro do meu próprio sangue na minha própria camisa começava a me incomodar e me dei conta também de que embora ninguém tenha reparado muito em mim vagando pela noite, ao nascer do sol, quando eu embarcaria, as pessoas notariam todo aquele sangue. Eu não queria ouvir perguntas porque além de improvável, tudo que eu respondesse estava determinado a ser considerado errado. Não era uma boa época para ser um homem coreano coberto de sangue em Tóquio tentando embarcar sem documentos em um navio de volta para sua terra natal.

Me levantei, olhando com cautela o ambiente, ainda seguro em meu esconderijo. Eu estava mesmo inquieto enquanto esperava, e eu julguei que agir me faria pensar menos em morder pessoas. Havia um carregamento de tecidos que eu poderia saquear. Só pegaria algo para me cobrir e entrar no navio mais discretamente. Me dirigi à pilha com a mercadoria que eu pegaria. Com cuidado para não ser visto ou ouvido, me movi até um dos fardos de tecido e comecei a abri-lo com o máximo de cuidado possível. Ouvi passos se aproximando, provavelmente outro carregador trazendo mais mercadorias para aquela área de carga. Eu o vi por uma fresta entre duas grandes caixas. Sabia que poderia pegar o tecido e correr a tempo sem ser visto, mas o cheiro dele me atraía de um modo que me desconcentrava. Fiquei praticamente paralisado, meu corpo dividido, sem saber se cumpria a ordem racional do meu cérebro ou a ordem instintiva. E então o homem me viu com parte do tecido, uma seda cara e delicada, nas mãos. Corri, mas ele gritou. Outros trabalhadores da área se juntaram para correr atrás de mim. Eu percebia que estava muito veloz naquela corrida e logo deixei meus perseguidores pra trás. Me afastei da zona portuária e fui parar em uma área cheia de pedregulhos. Estava satisfeito em ter escapado mas aborrecido por ter me afastado dos navios, meus únicos meios de fugir. Os primeiros raios de sol começavam a surgir. Me cobri com o tecido e tentava retornar ao local onde os barcos se atracavam. Me aproximei discretamente de uma fila de passageiros se preparando para embarcar. Pensei que estava passando quase despercebido, mas uma voz gritou "Ladrão" e eu tive que correr novamente.

Desta vez, por mais rápido que eu corresse, era alcançado por alguém tão veloz quanto eu. Ele me pegou pelo braço e quase sem esforço me parou. O homem era alto e estava todo coberto por um terno, luvas um grande chapéu que encobria grande parte de seu rosto. Ele estava de óculos escuros também, mesmo que fosse noite. Eu só podia ver seus lábios grossos se movendo, me mandando determinada e serenamente devolver o tecido. Entreguei-o em sua mão e com uma voz grave ele o devolveu aos outros homens que só então começavam a se aproximar do local até onde havíamos corrido, dizendo a eles que se responsabilizaria por mim.

Houve uma discussão. O trabalhador responsável pela seda roubada disse que não poderia pagar pelo tecido, já danificado durante o roubo. O homem coberto simplesmente tirou algumas moedas do bolso e entregou ao outro uma quantia generosa que poderia cobrir o prejuízo e fazer o silêncio prevalecer sobre aquele assunto.

Ele me ordenou a segui-lo e eu hesitei, obviamente. Poderia ser outro homem compelido por Sada a me resgatar. Eu não queria voltar à escravidão e estava atento a alguma outra possibilidade de fuga. Eu só queria voltar à minha terra e talvez morrer de fome por lá. Em paz, em casa. Mas assim que chegamos a uma viela deserta e afastada, ele tirou o casaco e colocou sobre mim. Evitei seu toque mas ele me convenceu com uma só palavra. "Kajima"

-Ele era coreano, então?

Era a primeira vez que Jungkook falava em um longo tempo. Ele estava o tempo todo atento à história, seus olhos arregalados fixos em Jimin. Ao perceber que o outro não havia comido e que o tempo deles ali era curto, Jimin apenas se concentrou no desejo de comer e tocou o ombro de Jungkook. O mais novo começou a levar a colher à boca quando interrompeu o próprio ato.

-Eu vou comer, Hyung, mas não pare a história.

Jimin sorriu. O garoto estava esperto, mais vivo e mais interessado. Isso o deixava satisfeito. Continuou a narrar enquanto o outro se alimentava.

-Ele não queria que eu me afastasse dele, e me guiava apressadamente pelas ruas de Tóquio. Eu percebia que ele olhava o tempo todo para trás, mas não estava preocupado com alguém que pudesse estar nos seguindo. Ele olhava para o sol, quase nascendo. Corríamos com mais pressa e percebi que não estávamos muito longe da praia anterior. Estávamos em uma outra parte do litoral, onde o mar era tão calmo quanto no porto, mas o local estava deserto. Só havia um único barco de porte médio. Entramos na água e entendi que iríamos embarcar. Então fiquei desconfiado. Para onde me levariam? Aquilo era uma armadilha ou eu estava sendo salvo? O que aquele homem ganhava em me ajudar? E porque fazia aquilo? A cada nova pergunta que surgia em minha mente eu diminuía minha velocidade. Ele voltou, pegou meu braço e me forçou a correr ainda mais rápido pela água ainda rasa, até a escada externa que nos levaria ao convés daquele barco. Eu parei em frente à escada, me recusando a subir, sem entender o que estava acontecendo. Me virei para ele e ele levantou a aba do chapéu, baixou os óculos escuros e me pediu, usando meu nome, pra que eu decidisse logo o que queria. Eu conhecia aquele rosto e aquela voz.

-Ele sabia quem era você? Quem era?

-Kim Namjoon.

-Ele te resgatou?

-Assim que vi que era ele, entrei no barco. Ainda não entendia bem as intenções dele, em especial depois de tudo que havia acontecido naquela noite, mas era um rosto familiar. Subi as escadas e logo em seguida ele veio, correndo atrás de mim e me puxando pelo braço para dentro de uma cabine. Todas as janelas da cabine estavam cobertas e lá dentro a iluminação era feita por velas e lampiões. No escuro, vi que os outros hyungs estavam lá.

-O que está acontecendo? – perguntei, com vontade de chorar.

Eu precisava saber.

Noites vivas - JikookOnde histórias criam vida. Descubra agora