66. A história de Hoseok

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 Eu não tenho muitas memórias da minha vida humana. Lembro de ser filho de um homem sábio, e a única lembrança que tenho da voz dele é que ele me dizia que se casou com minha mãe em um casamento arranjado para ascender socialmente, mas que encontrou o amor. Me lembro como minha mãe era cuidadosa e carinhosa. Não me lembro de nada ruim sobre minha família, e me lembro que tinha uma irmã mais nova, muito delicada e engraçada. A única memória que tenho de Dawon em que não estávamos rindo é do meu último momento humano.

Ela andava com a cabeça coberta por tecidos de seda, escondendo-se do sol com todas aquelas cores vivas. Eu a acompanhava, e estávamos em uma espécie de estrada de chão. Não sei bem porque estávamos ali ou de onde vínhamos, mas ela andava apressada, insistia que devíamos chegar em casa antes do pôr-do-sol. Eu caçoava dela, que estava séria demais. Logo ela que zombava de mim por eu ser medroso, corria como se algo terrível a perseguisse, sem querer me explicar mais nada. Sem imaginar que ela sabia de algo que eu não sabia, fiquei do lado de fora mais alguns instantes. Eu podia avistar nossa casa. Morávamos em um lugar a céu aberto, no alto de uma colina, de onde podíamos ver o sol nascendo e se pondo. Eram os espetáculos que eu mais apreciava assistir, e aquele foi meu último pôr-do-sol. Não houve nenhum nascer do sol depois daquela noite.

Eu não sei o que houve, quem me atacou, se a intenção da pessoa era apenas me matar ou realmente me transformar. Não sei como tudo aconteceu. Eu só sei que eu acordei em meio à mata, sozinho, com fome, e tive que aprender por mim mesmo que eu precisaria me alimentar de sangue humano. Me localizei, percebendo que estava próximo a um vilarejo desconhecido e com fome, ataquei e matei minha primeira vítima. Mas aquilo me causava repulsa e eu lutava tanto contra aquele instinto que só me alimentava no máximo da minha fome, quando já não conseguia mais evitar aquele desejo. Eu me escondia na floresta, tentava me alimentar de plantas ou da caça, mas nada me saciava e aquela comida inclusive me adoecia se eu a ingerisse em excesso, o que eu acabava por fazer na tentativa de que aquilo me impedisse de atacar um ser humano. Toda vez que eu me alimentava, descontrolado, eu acabava matando as pessoas. E aquilo me deprimiu. Por mais que lutasse contra o instinto, ele voltava a me atormentar. Tentei me matar, mais de uma vez, e assim descobri que era imortal.

E então percebi que teria que viver, mas não queria mais matar ninguém. Deixar de ferir seria impossível, mas eu queria tornar aquela nova forma de viver menos mortal. Fui me treinando, pensando que talvez fosse possível que eu conseguisse voltar a ver minha família sem matá-los ou feri-los. Eu me perguntava se havia acontecido alguma coisa com eles, se Dawon sabia de algo que não me contou e se ela também havia sido atacada. Será que ela estava como eu ou havia conseguido voltar para casa, se proteger e ainda vivia como humana, com meus pais? Eu só pensava em como eles deviam estar preocupados comigo, mas que ficariam muito decepcionados se eu me apresentasse como aquela nova criatura assassina.

Quanto mais eu voltava a conviver com os humanos, mais aprendi o poder que podíamos ter sobre eles, e isso me ajudou a entender como usar nossa saliva, como podíamos nos alimentar deles sem causar dor e como eles podiam sentir o que sentíamos quando os tocávamos, caso já tivessem sido beijados. Passei a controlar meus pensamentos, com a intenção de acalmar os humanos na hora do ataque. Percebi também que eles iam se tornando mais frágeis se nos alimentássemos deles repetidas vezes. Depois de muitas tentativas, erros e alguns acertos, senti que podia voltar a procurar minha família sem colocá-los em risco. Eu era dono de mim novamente, embora ainda fosse algo que não queria ser. Saí daquele vilarejo cujos moradores eu já não tinha mais coragem de encarar depois de matar, sem querer, eu sei, algumas das pessoas que eles conheciam. No próximo vilarejo, trabalhei como uma espécie de guarda noturno da família nobre local, o que me foi suficiente para juntar recursos para enfim voltar ao lugar onde eu vivera com minha família. Não é que aquilo fosse comum, mas eu também havia adquirido um senso de independência dos costumes. Se eu queria trabalhar, trabalharia. Se quisesse sair de um lugar, sairia, sem me preocupar se o costume era servir para sempre uma família ou não.

Noites vivas - JikookOnde histórias criam vida. Descubra agora