Velhas Memórias 4/5

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Quando Raquel foi dormir naquela noite, a sua cama na Mansão Albatroz pareceu errada, subitamente pequena demais, desconfortável.

A cama do seu quarto no Pombas era confortável, mas nojenta. Grande demais e nunca estava vazia.

Isso fez a bile subir. Das primeiras vezes ela chorou, ela sabia que a dona do lugar estava na porta, ouvindo. As feridas ainda não estavam curadas e ela teve que pagar ali por todo o tratamento que recebia, precisava pagar pelo próprio quarto, pelo intento, pela água. A curva de desprezo da boca cheia de ópio a assombrava todas as noites. Sorrindo, ouvindo-a chamar.

Ela não estava mais lá. Raquel se lembrou. Ela tinha voltado para casa.

Casa. A noite inteira sonhou com seu pai lhe dizendo que estava tudo bem, que aquilo era perdoável. Sonhou que ela corria até fábrica desmoronando, ela tentava se afastar mas não saía do lugar, enquanto sua mãe a encorajava a entrar nas chamas. Sonhou com Rubens numa mesa de jantar, forçando-a engolir um prato de vísceras amargas que escorriam por seu queixo até um babador mal ajustado.

Quando acordou, não havia plano salvador algum que pudesse salvá-la ou ao seu bode expiatório.

A manhã se arrastou como os parcos planos da menina. Eles não eram bons. Nem nobres. Não eram sequer completos.

Pela manhã, ela foi até a indústria. Girando o novo anel no dedo nervosamente, sua coleira e sua promessa, ela passou pelo limiar das portas, com mais liberdade do que já tivera a vida toda. Ela não usava mais a roupa do Pombas. Ninguém parecia reconhecê-la.

As cicatrizes não reclamaram com o esforço, elas não abriram, nem vomitaram. Estavam fechadas por fim.

Ela analisou o local, se mantendo longe dos trabalhadores e seu ritmo insuportável, o lugar todo tinha um ar pesado como se todos os fumantes do mundo fizessem um baile ali. Raquel caminhou pelas maquinarias, as plataformas e os guardas. Mas aquilo não lhe dava nada. Era uma tumba cheia de corpos.

Ela se arrastou pela cidade, o sol queimando nas costas, perdida. Parou em frente ao Pombas, o bordel de sua mãe. Ela sentiu dor como se a sombra do local ardesse na própria pele e congelou.

Esperou ver um lugar que estava familiarizada mas aquilo era pior que todos os seus pesadelos. Antes de correr, ouviu um soluço.

- Eu não vou ter escolha, me deixe voltar, por favor. - A voz feminina soluçava penosamente enquanto era chutada para fora.

- Você não tem utilidade aqui. - Raquel ouviu a voz da mãe, irredutível e cheia de nojo mais alta que os chorinhos. - Vá atrás dos anjos, use uma capa para cobrir... isso, e suma da minha vista.

- Eu sei que tinha uma garota como eu aí! Eu a vi! As cicatrizes... elas...

A mãe de Raquel deu uma risada profunda e cruel.

- Não se preocupe, todos os clientes dela foram pagos por alguém superior. Ninguém pagaria pra ter algo assim na cama por vontade própria. - A velha cuspiu.

Shivani sentiu o mundo desmoronar sob seus pés. Axel Adonis havia pago aquele lugar, havia pago todos os clientes. Apenas para puní-la.

A garota nua saiu correndo, as palavras marcadas na pele dela ainda cicatrizando. Os insultos punitivos estavam feios, repuxados e grotescos como os de Raquel. A garota se abraçou, tremendo, e caminhou para fora sem nem olhar para a outra menina. Raquel não conseguia se mover com a mãe tão próxima, o pânico corria como um animal enjaulado em suas costelas.

Aquela era a garota que havia se ferrado nas mãos de Adonis por causa dela.

O que ela esperava ali? Voltar ao emprego de prostituta? Naquele lugar horrível? Com aquelas cicatrizes? Ela não sabia o que Raquel passara ali com aqueles insultos gravados no corpo.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataOnde histórias criam vida. Descubra agora