Perigos e Amigos

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Khrysaor parou para ouvir, pegando apenas um pedaço da conversa.

- Para mim não foi assim. - Sussurrou Asmus, entre amargor e descrença.

Asmus devia ter quinze anos, deitado na grama abaixo de uma centena de estrelas. O irmão, com um semblante tranquilo, sorria para ele.

- Para mim... - Ele pensou, escolhendo as palavras. - Senti como se a divinidade sujasse meus dedos. Mas era apenas o sangue. - Estava de deitado de costas para o céu estrelado. - Depois foi como se ela me devorasse e me cuspisse, banhado em saliva de ouro líquido. Me senti mais... Humano do que nunca. Assustado, solitário, vazio e desejoso. Me senti... quente, meu próprio sangue correndo nas veias parecia vinho, aquecendo uma noite de inverno. - Senti-a amarrando meus ossos uns nos outros, enquanto tirava de mim algo que importa para a humanidade. Senti-a me beijando e colocando algo na minha língua e na minha garganta e de repente, havia algo estranho na minha voz...

- Como o sabor de uma Romã cheia de sementes. - Completou seu irmão mais velho. - Não foi tão diferente assim. Somos parecidos irmãozinho. Nós dois, contra o mundo. Nós dois, para sempre.

Asmus deixou um sorriso leve abrir espaço entre seus dentes.

- Atlantis está no nosso prato! - Asmus empurrou o ombro dele, seu sorriso crescendo.

- A cidade estará de joelhos! - Gargalhou o mais velho, abrindo os braços contra o céu noturno e se deixando cair contra a relva. - Pronto para a adoração? As cantigas? Os louvores? - Ele mexeu os ombros.

Asmus rolou na grama.

- Vai ser divertido ser um ídolo. Mal posso esperar para ver quando erguerem aquela nossa estátua na entrada da cidade. - Tamborilou os dedos. - Mas vai ser estranho ouvir as rezas.

Aramis balançou a cabeça.

- O quê?! - Aramis gargalhou mais. - Vai ser a realização do meu sonho mais selvagem! - Ele deu um salto, se sentando. - E tudo o que preciso fazer é mentir, convencê-los que somos uma reencarnação qualquer e então...?! Listar nossas bençãos!

- Não vai ser tão fácil assim. - O sorriso de Asmus foi diminuindo. - Essas pessoas têm o rosto dos últimos deuses gravados na mente e nas paredes, nas estátuas, nos altares. O bisavô do bisavô foi abençoado por Akantha. Elas não sabem como a divindade funciona, nem sequer acreditam que um deus pode sangrar. Não vai ser tão simples convencê-los que seus deuses... O que vamos dizer? Que eles se aposentaram? Por lágrimas de sereia, Aramis! Não sei como podemos fazer isso acontecer.

Aramis bufou.

- Nada que uma pequena demonstração não possa resolver. - Ele tocou no ombro do irmão, que se encolheu. - O povo de Atlantis ama apenas duas coisas: a beleza e o poder. E isso é algo que nós dois podemos ofertar.

Asmus levantou os olhos, assentindo.

Khrysaor fechou a porta. Não devia ter perdido tanto tempo ali.

A partir daquela porta, as memórias pareciam sair da ordem.

Em uma delas, Asmus era criança e assistia um homem com o rosto borrado pescar em um imenso navio.

Em outra, ele era adolescente, distribuindo flores para seus flertes da cidade.

Em uma delas, ele e o irmão discutiam.

- Vamos amanhã. E vamos. Resolver. Isso. - Apontou Aramis com rancor na voz.

- Vamos dar mais tempo a eles. É mais difícil para as ilhas, camponeses, mentes fechadas. - Intercedeu Asmus. - Cidades pequenas cheias de idosos, Aramis.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataOnde histórias criam vida. Descubra agora