Amável Monstro

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Shivani esperou até Eris se afastar. Asmus tossiu, desconfortável.

- Hum, olá Lindo Pesadelo. - Ele cumprimentou, sentado estranhamente no divã. - Acho que tem um mal entendido aqui.

A pirata o encarou, fulminante, deu um passo na direção dele e o socou com toda força. Asmus caiu para trás.

- Meu nariz... - Ele grunhiu, segurando as bordas do estofado carmim. - Eu entendi que me odeia, pode não acabar com meu rosto bonito?

A pirata tentou agarrá-lo. Um filete de sangue escorreu até a boca do monstro.

- Nós podemos conversar! Vamos, você pode me perdoar. Não tem coração, amor? - Ele gracejou se escondendo atrás do divã, os lábios ainda molhados das uvas. Asmus parecia mais altivo que nunca, mais bonito do que ela jamais vira, mas ali naquele paraíso ele com certeza estava sendo bem cuidado.

- Eu tenho coração. Você não. - Acusou a pirata, ela subiu no estofado e o desgraçado se afastou mais. - Você pode enganar qualquer um que colocar os olhos, mas eu sei que você é um mentiroso, manipulador, ladrão. Eu estava cumprindo meu propósito à perfeição! Mas você... - Ela fechou aos mãos ao lado do corpo para não esganá-lo.

- Sou o caos que você precisava. - Ele sorriu sedutor. - Vamos, seu "propósito" é vazio e fácil. Mas isso que você quer é perigoso demais. Na verdade, eu lamento por te roubar, te abandonar e te deixar para ser devorada.

Shivani se aproximou mais, Asmus preensou o corpo contra a parede. Ele não podia aumentar a distância entre eles. Ele deu uma risada desajeitada.

- Perigoso demais? - Murmurou Shivani baixinho, apenas para ele. - Não me diga o que é perigoso demais para mim.

- Você não sabe o que está procurando. - Ele murmurou.

- Por que você fez aquilo? - Ela não sabia o porquê estava perguntando isso, mas precisava. - Por que me deixar para morrer se me queria fora de perigo?

Silêncio. Asmus baixou o rosto. Ele ainda sorria, pareceu ficar pior, mais frio, mais desumano.

- Porque eu podia. - Ele respondeu, mas Shivani sempre soube degustar mentiras. - Fiz porque você me irritava, queria me livrar de você. Que outra razão eu preciso?

Shivani sentiu alguma coisa ficar mais dura dentro de si. Uma sensação nostálgica e excruciante. Ela quis machucá-lo, vê-lo sangrar.

Ela estendeu a mão. O monstro ergueu uma sobrancelha. Ela esperou.

- Não está comigo. - Ele desviou os olhos dos dela.

Shivani suspirou. Ela queria matá-lo ali mesmo. Ele estava tão próximo que somente a respiração dele a enervava. Mas ela tinha outros planos.

- Certo. Onde está?

- Você sabe onde está.

Ela fechou os olhos com força, frustrada.

- Na sala dos tesouros em algum lugar desse ninho de sereias. - Adivinhou. - Porque você deixou levarem tudo o que você tinha em troca de se esconder aqui com todos os prazeres idiotas que queria.

- Exatamente, Lindo Pesadelo. - Ele sorriu ousado demais para um momento como aquele. - Não me olhe assim, eu planejava pegar depois.

- Depois que te estripassem?

- Depois que eu me entediasse!

A pirata o encarou com desprezo.

- Você vai nos tirar daqui. E eu vou pegar a espada. - Ela colocou um dedo no peito de Asmus. - Crie uma distração, saia vivo ou morto, não me importa. Você vai ter o que merece.

- Está me dando uma nova chance, amor? - Os olhos dele brilharam.

- Não. - Shivani enrugou o nariz e colou os lábios nos dele.

Asmus abriu os lábios com a surpresa do beijo doce. No mesmo instante, Shivani aprofundou aquilo, até eles estarem deitados no chão. As mãos dela passearam pelos cabelos escuros dele, bagunçando-os, desarmando-o completamente. Para ela, ele tinha gosto de azar e sonhos perdidos. Mas seus lábios eram macios como asas de anjos.

As mãos dele passearam pelo corpo de Shivani, lentas e quentes, sentiu cada pedaço de seu corpo. Ele pode sentir as cicatrizes sob os dedos, sob a camada fina de roupas. Shivani mordeu o lábio dele com força e impediu que se afastasse, sentindo o gosto do sangue, doce, não parecia sangue. A pirata sentiu o sangue esquentar. Ela não hesitou, queria machucá-lo. É só um beijo.

Ela segurou os pescoço de Asmus, sentindo o estremecer dele sob o beijo profundo, o toque lento. Os dedos dela passaram pela clavícula e pelos músculos definidos frios como traição. E então, ela girou a língua uma vez mais e empurrou a pérola cor-de-rosa de Eris para o fundo da garganta do monstro.

Asmus se afastou com os olhos arregalados. Ele pôs as mãos sobre a boca, sobre o sangue que se envenenaria em segundos.

- O que você fez? Shivani, o que você fez?

Shivani sorriu maliciosamente enquanto via os olhos dele mudarem de cor sob o encantamento. A pérola doce de veneno de sereia que ela degustara mas não engolira, se provara muito útil.

🌙 🌙 🌙

A cerimônia das sereias era algo lindo como o último suspiro de um amante, e igualmente trágico.

Mas Shivani jamais imaginou que se pareceria com aquilo. Vestida em seda vermelha, quase transparente, ela foi levada até o centro do ninho, uma grande caverna côncava com uma abertura acima.

As luzes diminuíram, apenas uma leve iluminação vermelha fazia tudo parecer mais mítico. Shivani sentiu frio. Ouviu os sons leves das sereias à sua volta, silvos e risos. Desejou ter uma montanha de sal.

Ela levantou a cabeça. Aquilo estava indo longe demais. Ela não conseguia ver nada. Ela não transformaria em uma sereia de verdade, mas não tinha nada que pudesse protegê-la agora. Ela sentiu algo tocar em seus dedos, era Asmus, enfeitiçado, andando perto dela como por instinto. Ele não parecia ver a sua frente, ou mesmo olhar para ela. Aqueles olhos de uma cor rosa veneno estavam vazios.

Alguma parte dela se tranquilizou ao vê-lo tão miserável. Ele merecia. Ele estava bonito. Ele era seu.

E se queria se livrar dela, ela se livraria dele primeiro.

Então a pirata viu o brilho dos tesouros a frente de seus olhos, pilhas e pilhas subindo até a abertura da caverna, altas como montes. O reflexo vermelho iluminando as sereias detrás das pilhas de ouro. Os dentes afiados da cor do sangue.

Uma carcaça estava no centro do salão, com uma sereia debruçada sobre aquilo, comendo os restos. Os grunhidos eram altos como os de um animal faminto, o sangue manchava tudo em volta.

- A segunda irmã que se junta a nós nesta noite. - Uma voz profunda veio de algum lugar na multidão. - Levante-se para dar lugar a iniciação.

Quando a sereia largou a carne vorazmente e virou a cabeça Asmus agarrou a mão da pirata por instinto sentindo o pavor que vinha dela, Shivani recuou diante da sereia.

Os olhos verdes dela estavam cheios de lágrimas e o sorriso que lembrava uma princesa agora fora substituído por uma arcada de dentes imundos. A pele de Agnes estava marcada de escamas e ela tremia de terror. A cauda se movimentava como um fantasma. A ossada atrás dela era humana, bem humana.

- Shivani... - Ela ganiu com sua voz de sereia. - Elas me obrigaram. Eu não - Agnes grunhiu como um animal e tentou avançar com garras e dentes, depois se retesou e se enroscou em si mesma. - Não. Não. - Olhou para os ossos e balançou a cabeça freneticamente. - Me perdoe. Me perdoe...

As sereias a volta delas sibilaram, esperando uma nova sereia se formar, gritando para Agnes sair do caminho. Shivani não sabia o que fazer.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataOnde histórias criam vida. Descubra agora