Prato Cheio

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Agnes não via ninguém há quase quatro dias.

Era insuportável. E ao mesmo tempo, a única coisa que podia protegê-la.

Ela não conseguia se controlar. Não havia nada que pudesse fazer. As escamas criavam películas entre seus dedos, as garras saiam de suas unhas sem que ela percebesse, a fome crescia rapidamente como uma criança monstruosa em sua barriga.

Ela tentou mandar todos os criados embora com a desculpa de estar indisposta mas não acreditava que pudesse manter a farsa por muito tempo.

Mas como ela podia deixar qualquer um entrar, quando todos pareciam tão deliciosos? As empregadas com seus braços enormes de bater manteiga e lençóis e os guardas com costas enormes e cheias de carne.

Ela tinha sonhos horríveis onde os abria e os dilacerava como um animal. Outros em que fazia banquetes com seus corpos como os de uma senhora da alta sociedade. Onde os pratos principais eram pernas e olhos.

Às vezes acordava assustada, se perguntando se tinha matado alguém. Ela precisava fazer o que Eris a mandou fazer. Era o único jeito.

Só assim ela poderia descobrir como as sereias mantinham sua racionalidade.

Shivani já não podia ajudar. Na verdade, ficar ao lado da pirata foi o que a colocou no meio do furacão. Ela não podia fazer nada por Agnes sem a fada e agora parecia ter se esquecido dela.

A pirata não era diferente do pai, ambos estavam prontos para vendê-la sem dar ao assunto um segundo pensamento. Tudo o que Agnes podia fazer era tentar sobreviver.

Depois que Shivani desmaiou na festa de noivado, o governador prestava muito mais atenção nela do que na própria noiva. Agnes duvidava que seria assim se ele soubesse da tentativa de assassinato ou se ele tivesse a mínima ideia do que as duas haviam sido mandadas para fazer.

Ela se virou na cama, enrolada nos cobertores como uma lagarta. Sentia os nós na garganta das pérolas se formando todas as noites.

- Senhorita Adonis... - A porta se abriu lentamente e Agnes deu um salto. - O Governador está aqui para vê-la.

Agnes se escondeu nos cobertores.

- Diga a ele que não me sinto bem! - Ela estava morta. Estava morta. Quando ele a visse, o que faria? Ela se olhou no espelho rapidamente, podia disfarçar as escamas, mas não as garras.

- Senhorita, ele disse que não a vê desde que chegou. Ambos estão doentes e que não há problemas. - A criada abriu a porta completamente e Agnes viu o governador encostado nela.

O governador vestia um gibão preto, tinha o rosto limpo e sério. Era como uma pintura num retrato. Os cabelos pretos lustrosos, a pele marrom clara do rosto sem manchas ou olheiras, os olhos azuis familiares brilhantes. Não havia nada de doente nele. Ele era bonito como uma mentira, uma mentira que ela gostaria de viver se não estivesse amaldiçoada.

Ela não se moveu, sabia da etiqueta, mas não podia arriscar. Infelizmente, o governador também ignorou a etiqueta e se ajoelhou ao lado da cama dela.

- Por favor, deixe nos a sós. - Ele disse a criada. Quando a porta se fechou, se voltou para Agnes. - Eu espero que me perdoe por não ter lhe dado atenção o suficiente esses últimos dias... - Ele buscou o rosto dela, mas Agnes se fechou ainda mais dentro dos cobertores. A cena era risível. - Muitas coisas vem acontecendo, e eu sei que devíamos nos ver mais, é o momento de nos conhecermos antes do casamento.

- Não se incomode, por favor. Sei de suas responsabilidades. - Sempre as palavras erradas. Ela precisava que ele quisesse estar perto dela. Precisava que ele a desejasse. Precisava enfeitiçá-lo. - Mesmo assim... Me sinto solitária. - Ela o fitou, esperava ter olhos chorosos. - Não sabia que meu futuro marido seria tão frio.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataOnde histórias criam vida. Descubra agora