Ressurreição

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Ela havia quase morrido dentro de um poço uma vez. Quase.

As cicatrizes antigas sussurravam com as novas. As novas riam, Santo Kraken, riam enquanto as antigas gritavam. Não apenas elas, mas as vozes das freiras ainda estavam em seus ouvidos. Shivani havia parado de escutá-las há muitos anos para ouvir outra coisa. Ela calara suas bocas podres para ouvir uma melodia doce.

A melodia da ambição.

Era apenas o que ela podia ouvir quando foi içada como um saco de merda por meia dúzia de marujos depois de finalmente cair. Minutos depois de ser abandonada. Horas depois?

Quando eles arrancaram das mãos dela a faca improvisada de partes de dejetos. Os dedos estavam tão duros de terror, com os nós brancos envoltos no metal afiado, que eles quase precisaram quebrar para abri-los. Ela parecia semi consciente e coberta de mercúrio como uma estátua doente.

Viva.

Horas depois o pequeno mapa pareceu inútil e solitário, encharcado sobre a mesa. Foi um milagre, pensando em como ele saiu de dentro de uma piscina metálica junto com sua dona.

O Capitão havia mandado descer uma cabine de extração quando descobrira que Asmus desaparecera. Shivani foi encontrada ainda lutando contra as sereias no bolsão de ar ali embaixo, coberta de metal e feridas. Ela deveria estar morta.

Mas ela estava viva pela raiva. E doente.

Ninguém entendeu o que houve lá embaixo. Shivani não disse nada, apenas vomitou e estremeceu com os efeitos da intoxicação. Ninguém sabia onde estava Agnes ou Asmus, ou como as coisas que vivam lá embaixo acabaram deixando as marcas de dentes afiados na pele da pirata.

Shivani estava pálida como um peixe, a carne arrancada da sua perna criava uma linha de visão para o osso. Ela fora cuidada e enfaixada, e pela primeira vez, os marujos viram as palavras que estavam escritas na pele dela. Marcas de faca que traçavam "Covarde".

Não era o que ela lhes parecia. Aquelas já não eram as marcas mais interessantes em seu corpo, havia além da mordida de crocodilo, a cicatriz onde deveria estar a costela esquerda e a pele grosseira do ombro antes atravessado por uma espada, e por fim as mordidas.

Elas cobriam seu quadril, sua panturrilha e seus braços, faltava carne, pele e músculo, e cheirava a saliva azeda, metal e sangue. Como se ela tivesse sido degustada por algo que não tinha pressa. Um novo arranhão prateado descia por seu maxilar e cortava uma pequena parte da sua orelha. Ninguém ousou comentar a respeito.

Por dias, Shivani dormiu e vomitou, acordando apenas para voltar a suar e estremecer, com ânsias e dores de cabeça. A diarréia fez o navio inteiro reclamar. A pele mastigada e arranhada soltava pus dia e noite como uma ave raquítica de pança inchada.

Ela ria de vez em quando, se lembrando de como fora boba por ter baixado a guarda. Ou ainda comparando esse estado com a noite em que seu pai lhe dera as cicatrizes de "covarde", pobre garotinha. Ela ria quando pensava no título que escolheria ao achar todos os seus pedaços da espada, delirando pela doença. Senhora dos Oceanos, Sereia Rainha, Deusa dos Nove Mares. Prava Mãe de Todas as Tolas. A Grande Patética Covarde. Eram bons nomes, ela usaria todos depois que cortasse a garganta de Asmus e recuperasse suas coisas.

Outros dias, ela apenas acordava em silêncio com a cabeça no lugar, trocava as próprias faixas e se deitava, olhando para o mar e para o horizonte. Esperando o Capitão abrir a porta e começar a reclamar da fuga do seu prisioneiro. Talvez ele soubesse que Asmus faria aquilo. Ou ela estava delirando de novo? Shivani traçava as possíveis rotas do monstro, com suas mãos cheias de ataduras. Para onde ele teria fugido, ela não conseguia pensar.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataOnde histórias criam vida. Descubra agora