Papagaios

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Asmus se gabava, tirando algumas reclamações dos piratas. As conversas eram o que quase acabava com o tédio, esperar até que seu plano pudesse ser posto em prática era cansativo. Ela assistia seus cães do mar conversando e se divertindo, apesar de no participar.

Ela se perdeu no sorriso o monstro por um instante. Asmus sempre foi fácil de sorrir, mesmo nas situações erradas. Ele havia salvado a vida dela, mas destruído uma parte dela no processo. Ela o odiava por isso, numa parte funda em seu âmago. Às vezes, Asmus era um amigo, às vezes um aliado e nada mais, às vezes alguém que ela podia amar, e as vezes um inimigo pior que um némesis.

O Arcanjo era tudo que Shivani ainda amava, fora o Capitão.

Apenas um desses dois itens merecia o seu amor, e este estava no fundo do mar no estômago de um monstro gigante.

A tripulação passou a conversar sobre um tema mais sexual, passando de boca em boca, as histórias obscenas e explícitas que só piratas não teriam o decoro para contar. A primeira vez de um que fora com seis moças. Dificilmente uma história real. A vez que uma pirata que havia feito isso na beira de um penhasco e o cara se animou tanto que desequilibrou. Um deles que confundiu as partes baixas de uma meretriz e acabou descobrindo algo novo sobre si mesmo.

- E você? - A pergunta se direcionou a Khrysaor. Que não havia falado desde o início. Quem quer que fosse o corajoso que falou com ele, devia estar muito curioso ou muito desatento, pois o olhar perfurante do viajante não era amigável. Shivani observou, sem muita atenção.

- Foi com minha esposa. - Ele respondeu sucinto, arrancando alguns arquejos do resto. Shivani também não sabia que Khrysaor era casado, ou que deuses podiam se casar. O olhar dele havia suavizado, como se a lembrança o tornasse mais humano e menos duro. Mas a mágica durou apenas alguns instantes.

Ele voltou a esperar com os olhos nela. Shivani podia sentir algo borbulhando sob aquela calmaria antinatural do deus da guerra. Esperando, esperando, esperando. Ele só precisava de um sinal dela.

- Ah Khrys? Quem diria que você tem um coração. Eu me lembro quando nos conhecemos... Você estava tão entusiasmado em descobrir meu nome e entrar na nossa tripulação. - Asmus caiu para perto dele afetado.

- E você em me expulsar. Assustado como um rato.

- Você me envergonha, estava sendo cuidadoso.

Ele o encarou.

Khrysaor só queria o caos, guerra, dor e qualquer coisa violenta que o avivasse, ela percebeu. E por isso não podia entender como havia espaço nele para amor.

Mas talvez ela estivesse apenas sendo presunçosa. Antigamente, Shivani acreditava que seres míticos e antigos fossem apenas mitos, lendas infantis. Ela cresceu num mundo afiado e venenoso e sem amor que, de repente se abriu para deuses amaldiçoados.

Era difícil conciliar as duas coisas de contos de fada.

- Não está sendo cuidadoso agora. - O tom de voz deles baixou. Quase encoberto pelas conversas no porão. Shivani se concentrou, separando a voz deles das outras. A pirata fingiu olhar para um pico de risadas, enquanto os escutava.

- Acho que nenhum de nós está, fingindo sermos ratinhos de porão. - Havia um sorriso ferino no tom de voz dele.

- O que houve com sua promessa, Asmus? - Khrysaor mastigou o nome. Seus olhos vermelhos ainda estavam fixos na capitã. Ela os sentia.

O monstro se manteve em silêncio. Muito havia acontecido desde que eles se conheceram. Os dois não eram o que se poderia chamar de colegas.

- Você estava errado. Ela não quis me matar ao descobrir. - Asmus murmurou.

Preto Cinza e Tempestade - FortunataOnde histórias criam vida. Descubra agora